O Amor Dos Fatos

Um idoso, com suas rugas, costas e testa sentou-se em um banco de praça, esperando o vento passar, o tempo soprar nas narinas, talvez descansar de tarde, ou para sempre, não sabia quando, sabia que estava sentado quando viu uma garota, bufando contra o chão e chutando folhas, passando.
Pararam, se encararam, ela percebeu que ele queria falar algo, sentiu que demoraria pelo silêncio que o senhor portava, cheio de preparação de discursos, então sentou-se, e num ato de compreensão, quem sabe para redimir a má impressão anterior, sentou-se e disse:

– Pode dizer, ouvirei tudo que o senhor quer que eu ouça.

E ele sem pressa ou paixão, começou:

– A vida toda, tentei entender as pessoas com compreensão, tentei enxergar lógica nos atos e dar o que queriam com base no que deveria ser seguido. Foi uma das maiores frustrações que passei, sem sombra de dúvidas. A felicidade minha foi ter a oportunidade de entender isto antes de estragar tudo, de exigir demais de todos. Não somos máquinas ou equações, infelizmente para uns, felizmente para outros.
Algo que notei no fluxo das décadas foi como as palavras perderam seu peso, seu valor, em dias atuais vejo que declarações sérias são nada mais do que pontos desconexos, o mundo está dinâmico demais para levar em conta promessas ou eternidades de fidelidade, isto mais me entristece, porque não sei lidar com esse panorama sem achar que os valores reais estão se dissolvendo no meio dos momentos que devem ser ignorados, novamente, sou de tempos em que o que era dito tinha peso muito alto, onde a honra era algo que sufocava, mas que mantinha, então sou naturalmente mais tranquilo com tal quadro, não me dou nem um pouco bem com essa frequência alucinante da banalização das coisas de hoje, tudo por um pouco mais de atenção?
Não sei.

Após uma pausa, respiradas, olhares, retomou:

– E aí, tive de parar e perceber que tão recentemente quanto o fenômeno da banalização está seu ponto positivo: A elevação do amor mais puro, o amor do ser. Este eu obtive quando estive em situações delicadas com muitos irmãos de alma e demonstrei quando estive em situações igualmente difíceis. É o amor que só é demonstrado por quem te conhece, aquele amor que é específico da atenção real. Explico: Te conheci por toda a vida, sei quem és, sei que tens uma alma doce e sincera, mas como qualquer ser humano – que não é matemático – teves seus momentos de falha, onde os fatos falaram mais alto do que toda tua vida. Daqueles momentos em que sua trajetória inteira foi resumida num ato ruim. Quem nunca ouviu falar de você, ou mesmo quem ouviu falar e não te conhece de fato ou conhece e não está num momento bom, irá te condenar sumariamente por aquilo – não só sua atitude, mas você inteiramente, tudo que você representa. Bem como você pode se encontrar na situação oposta, num ato brilhante, e ser amada por muitos, em que você se resumirá somente ao ato específico, independente do que foi realizado durante a existência.
Este é o amor dos fatos. Traiçoeiro, causa muitos desentendimentos e só atrasa a vida. É um laço frágil que não recomendo para ninguém, porém pode – pela terceira vez, infelizmente – ser necessário para sobreviver. O que é uma verdadeira lástima.
O amor do ser é o amor que tenho por ti, minha filha. Sei que falhastes, reagi como pai, o que te irritou profundamente, até agora. Fico feliz que tenha me dado crédito para ouvir. O amor do ser é o que nutro por ti, é maior e amplo, é o que perdoa incondicionalmente e com certeza é mais fácil de ser elucidado em tempos de hoje. Como as palavras estão se dissolvendo, seremos mais forçados a desenvolver esse amor do que nunca. Claro que tal poderá, num efeito contrário, desaparecer terminantemente se caírmos em um estado onde nos deixamos levar pelo fluxo dinâmico das banalizações diárias, em que não analisamos os atos e só os deixamos acontecer sem pensar ou calcular sequer por um minuto, desligando nossas mentes e entrando em modo automático, sim, o amor do ser pode sumir.
Mas prefiro acreditar que não, que no momento em que digo isto, e vejo seus olhos lacrimejando, sinto que entedestes a ideia, percebo que ela não morrerá aqui. E este é o sentido do amor do ser, sobressair qualquer amor dos fatos. Te amo por quem você é, pela sua vida inteira, não pelo que você fez hoje ou ontem, isso não é você, mas um fragmento ínfimo de tempo dentro de uma existência tão rica.

O longo abraço encerrou a conversa e o dia.

Deixe um comentário