Audição Inseletiva (sic)

Vejo duas crianças reproduzindo uma cena bastante comum: Uma fala cada vez mais alto enquanto a segunda tapa os ouvidos e repete uma sílaba como se não houvesse amanhã. É engraçado pensar que mesmo com todo esforço das mãozinhas em não deixar nenhum som invadir, pelo menos uma palavra acaba invadindo o recinto mental. E mesmo que finja não escutar, escuta.
E o que não é nem um pouco engraçado, dependendo de como acontece pode ser até trágico, é o inverso.

_E por isso eu resolvi escolher esta carreira, pai.
_Não.
_Como não? Eu acabei de justificar para o senhor que não há problema e não prejudicarei ninguém, nem a mim mesmo.
_Isso não é profissão de gente decente, gente trabalhadora.
_Eu acabei de falar…
_Se quiser continuar, vá, mas não aqui nesta casa.

E então, descubro que ele não precisou sequer tapar os ouvidos. O som entrava, fluía, sambava no corpo do ancião, porém a palavra em repetição silenciava qualquer vibração molecular.

Sonhos Lúcidos – 6

Era uma casa única, feita no topo de uma cordilheira de montes pontiagudos, cada cômodo era separado por pontes, que variavam de estrutura dependendo do dono. Poderíamos ver quartos isolados por fios de náilon, bem como salas interligadas por extensões helicoidais de safira, tudo acima das nuvens, onde tudo era mais intenso ao mesmo tempo em que era mais escasso. Grande narrativa percorreu o dia em que choveu uma torrente de ouro puro, travessias foram dissolvidas na velocidade de um reflexo áureo, outras nem notaram o súbito presente envenenado enviado pelos céus superiores. Lá era conhecida morada de clãs variados, famílias sorteadas por nada terem feito, umas se desintegravam e outras renasciam em meio ao sublime. Quando estive em tal móvel imóvel não consegui fazer nada senão respirar, respirava tudo que havia. Anotava para ver se assim eu dava crédito aos sentidos. Tudo dissolvia-se de manhã. E voltava.

Dobrar E Guardar

Ondulava o lençol branco para poder cobrir camas que não eram suas; o movimento foi aprendido cedo, quando aqueles braços ainda não conseguiam uma arrumação pontual. Gostava de ver as ondas fluindo o algodão, uma plenitude dominava sua mente.

Mais uma forma de ignorar a realidade.

Arrumar quartos fazia parte do ritual, mas nada era tão tranquilizante quanto o resultado, a vida era cheia de tarefas feitas só pelo prêmio, o meio era irrelevante.

Está limpo. É de noite.

“Cabeça vazia é oficina do diabo”.Que ditado certo esse, ela pensava, por isso a ocupação era tão importante, tão necessária. Gente parada é gente feliz? Duvido! Tá cheio de gente parada ali, ó, no cemitério!

Nada lhe trazia mais medo que o descanso.
Nada lhe trazia mais felicidade que o descanso.

Seu cabelo preso foi clareando, de prateado para branco-amarelado, agora os utensílio sumiam da mão como sua melanina, que ia dizendo adeus de fio em fio.
E as camas continuaram sendo arrumadas.

É O Que Lhe Resta

_Deixe-o reclamar.

A frase que rompeu minha lamentação desencadearia a minha redenção.

_Eu não aguento mais! É todo dia a ladainha! O choro! A mesma bosta! Já tentei de lógica e bom senso, mas ele não compreende!
_É, você está certo.
_Pois é.
_Então eu completo o que seria sua fala: Não te entendem, você não suporta e tudo continua, mesmo depois de crescer e aprender a ter paciência.
_Eu desisto do velho.
_Deixe-o reclamar.
_Como se houvesse opção. Eu sei que a idade faz isso, imagino que a vida dele foi bastante difícil enfiando teimosia como escudo contra a visão do abismo futuro que seria a existência dele. Mas meus limites cederam, prefiro ser egoísta.
_Deixe-o reclamar. É o que lhe resta. Pode ser torta, mas é a maneira que ele vislumbrou para aprender a não morrer. Antes que emende outro “eu sei”, responda-me: Por que você reclama?
_Depois de tanta tentativa, tanto grito, é o que me sobra.
_Temos um campeão aqui.
_E quanto as reclamações de quem pode fazer algo?
_O que é mais fácil?
_Ganhei, de novo.