O Telhado

Pronto em três dias, era o orgulho do construtor. Sua casa, seus tijolos e seu telhado; quis fazer de cor diferente, usou telhas amarelas e um cuidado exemplar. Questionavam o porquê de tanto orgulho, afinal só veria quem estava por cima, no máximo algum destaque em um programa de imagens de satélite e olhe lá, algo tão simplório e bobo. Ele não sabia responder, pensava apenas como o amarelo ficava tão bem com a luz de um dia quente.
Sua filha foi sugerindo ideias que aprendera com os amigos, pai, coloque sementes entre os espaços das telhas, assim nascerão plantas que vão refrescar a casa e até dar frutos.
Que ideia maluca essa.
Mas o que a gente não faz pelos filhos, não é mesmo?
E as plantas começaram a crescer, primeiro o amarelo das telhas foi desaparecendo diante do verde, depois as raízes estalavam o telhado, furavam e teciam um novo arcabouço para o teto da casa, naquela altura e com aquele sol nada poderia brotar e florir, ele pensava, só ficaria tudo sujo; enquanto isso camomilas enfeitavam o céu dali:
_Era a flor preferida da mamãe, por qual motivo mesmo?
_Eu não sei, ela só dizia gostar da calma e do chá.
E o pai queria discutir, mas não conseguia compor argumentos para enfrentar, deus me livre, enfrentar a própria filha, mas o telhado não estava feio assim, estava sim, estava ficando horrível, ao menos foi o que a vizinha falou esses dias, é aquela vizinha que quis tomar o lugar da minha mulher poucas semanas depois dela partir.
Prefiro confiar na minha filha.
Teias de aranha surgiam com as plantas que permitiam todo o tipo de goteira, a chuva fazia o chão cantar, o pai chiar e a filha ignorar seu erro matemático, e as plantas cresciam como se quisessem anunciar algo.
_Pai, eu preciso falar uma coisa para o senhor.
_Diga meu amor.
_Eu odeio esse telhado.
_Trocamos então.
_Não, o senhor não entende.
Ninguém compreenderia.
A menina começou a puxar o barro, raízes e tudo ia precipitando, primeiro os fragmentos, a sujeira, nesse meio tempo o pai perguntou como aquele monte de coisas que eram telhas ainda se sustentava; e fragmentos caíram até dois grandes blocos de teto encerrarem o cenário.
A lua estava cheia.
_Quero ir embora desta casa, cansei dessas memórias me perseguindo.
_Mas meu amorzinho, a gente não tem como sair daqui.
_Eu sei, é que…
O pai sabia o que ela queria dizer, entendeu que a mãe ainda era presente demais, soube que esse tempo todo a menina estava interagindo e tentando arranjar um melhor modo de lidar com o real, com o iminente, teve a paciência de esperar e observar até o fim. O momento chegara.
_Vem cá…
A menina foi descansando e compreendendo, dos aspectos que mais lhe agradavam nessa relação esse era o mais admirado – não era preciso falar mais do que sentir.
E juntos reconstruíram o telhado, paredes e alicerces para mais cem anos.

Pedaço de Honra

_Responda rápido: você é a favor de qualquer projeto de lei que censure qualquer conteúdo e/ou acesso a arquivos em ambiente digital?
_Sim. De preferência o mais pesado possível.
_Por que?
_Pela volta do… Ei! Não era uma resposta rápida e pronto?
_…
_Tudo bem. Eu justifico. É pela volta do romantismo.
_Que romantismo?
_Um romantismo de nostalgia. Para eu poder viver em tempos de repressão, em que atos heróicos possam ser os mais simples, tempos onde pen drives e HD’s externos possam representar uma sentença de morte e que o compartilhamento de arquivos seja algo tão arriscado quanto criticar o governo décadas atrás. Quero um pedaço de honra, algo que faça minha rotina não ser só isso, e sinto que esse anseio não é meu. Queremos ser como aquele nosso tio chato, que agora é desiludido com política e que “no tempo dele” todos lutaram duro para conseguir o tão desprezado e manipulado direito de voto.
_Isso não seria algo caprichoso demais?
_Caprichoso? Tudo é PREMIUM hoje, o consumo para um só nunca foi tão expressivo como atualmente, ostentar visões polêmicas não assusta mais. Quero uma ditadura digital e a fragilidade da paz falsa, da paz de mentira!
_É só o senhor ter uma vida de pobreza extrema para ter todo esse romantismo, não acha mais fácil?
_Não poxa, e os tweets do meu iphone, de onde sairiam meus 140 revolucionários caracteres?

Recompensa Ou Porquê da Busca

_Você tem essa tangerina para ir buscar a pasta.

Das situações de pressão temporal que enfrentou, esta era a mais expressiva, pedaços de casca e gomos do fruto marcariam; um doce e inusitado cronômetro.
A transpiração nascia naturalmente na testa do corredor, era um dia ensolarado – muito – e qualquer esforço extra-rotineiro traria a água salgada à tona, na tentativa vã de resfriar o corpo.
E quando se acelera tudo parece mais lento, como se o indivíduo penetrasse noutra dimensão, que surgia somente em situações que necessitavam de alta velocidade. Quando ocorre tal discrepância dimensional quase tudo parece atrapalhar. De certo é o ego expandindo até não caber no sujeito. É? Se não precisasse tanto daquelas palavras espalhadas não correria, não procuraria, hesitaria e evitaria.
Contudo o plano das possibilidades era mais um placebo.
Limpar, esvaziar, todas as inutilidades mentais só para só correr ia ficando mais fácil a cada quadra.
_A senha.
_Não há
_Aqui.
Um bilhete.
Ao que parece estavam brincando de caça ao tesouro com o ser referido.
Correr de volta.
Alcançar o portão.
Puxar o ferro.
Dizer.
Ver.

.

_Isso é um papel em branco!
_Exato, não há antídoto.
_Mas, e agora?
_A tangerina não acabou, aceita um gomo?

Mais Uma Conversa Sobre Outro Sujeito do Bairro

_Você sabe o que o Élcio fez?
_Élcio?
_É, aquele da padaria.
_Não era do açougue não?
_Não, foi aquele que perdeu o anel.
_O único Élcio que eu conheço perdeu as chaves de casa.
_Não, a chave perdida foi do fusca.
_Élcio por aqui só aquele infeliz do opala.
_Que seja. O que eu quero dizer é que ele foi chutado de casa.
_Mas ele não morava numa chácara?
_Não, o tio do Élcio é que tem uma fazenda.
_Só existe o Élcio, ele não tem tio não.
_O Élcio saiu de casa porque deitou com sua mulher.
_A dele?
_Não.
_…

Então ficou claro o motivo do não-conhecimento.

Sobre Escolhas

Há quem prefira encarar a vida como uma enorme e duradoura fuga de uma certeza obscura, tal trama que engole tudo e massacra o sobrevivente; como se os míseros bocados de bocas ascendentes fossem bolsões de ar sob o tão temido cobertor da realidade, ilhas temporárias e ilusórias que servem para suportar outras camadas que virão.
Ele não, costumava dizer que seu porto seguro era a neutralidade, um zero macio e confortável que dava ocasionalmente seu lugar para algum pico emocional. Emocional não, operacional. O problema foi que a solução problematizou-se; assim o zé resolveu carregar a nulidade consigo, no bolso, escondido, para nem ele mesmo achar que ali havia um valor.
E, quem diria, o novo brinquedinho assumiu status de simbiose, que ia tomando milímetro por milímetro de herói de fim de semana; assim foi questão de pouco – nenhum – tempo para que o zero tomasse forma humana.
Epidemia e pandemia.
O tempo seguiu sem notar tanto lixo que se acumulava, tanta coisa inútil e medrosa que atolava as cidades, os continentes. E passou.
De zero em zero o início não mais importou.
Há quem prefira encarar a morte como uma enorme e duradoura mão. De preferência.