Instransponibilidade

Já assisti vários casos de pessoas que iam perdendo sua humanidade, contudo nenhum se sobressai a um que vivi não faz muito tempo, não foi um dos primeiros casos do tipo, mas foi o primeiro que eu vi com meus próprios olhos.
Começou com um desses amantes da vida, fique tranquilo leitor, a história é relativamente curta e lamentável – que sirva de exemplo pra não cometerem o mesmo.
Ele descobriu que tinha sentimentos e foi testá-los a todo custo, aqui e lá, frases, suspiros, mãos e respirações profundas, tudo estava dando certo até a primeira rejeição.
Sabemos que o problema não é o o não, mas como cada um reage e aprende com ele.
E algo surpreendente aconteceu, vale relatar que as coincidências me auxiliaram, e todas as vezes que eu vi o rapaz, o coitado estava sofrendo os estranhos fenômenos.
Seu movimento foi ficando mais empedrado, e sua pele subitamente ficou grossa, pareciam escamas, porém um pouco mais rígidas. O engraçado é que ele parecia o mesmo de longe.
Não tem problema, ele tentou consertar a rejeição com maneiras peculiares, ignorou o acontecido ou foi buscar o não relatado, até que descobriu um novo alguém que também teve início e fim sem nenhum meio.
Mais outra transformação, dessa vez o que vi foi a pele ficando rígida, criando rachaduras imensas, os olhos virando dois paralelepípedos com infinitos espinhos e os dentes se fundiam com a gengiva. Como você podem imaginar, de longe ele ainda parecia mais um normal.
O ápice foi quando ele percebeu que haveria benefícios em usar esta couraça, por que? Eu repito: por que? Após o ocorrido todos os fatos ficavam acumulados em pele, e por fim vi a pior cena do rapaz, talvez a última: A pele foi desgrudando aos poucos, como em um réptil, porém foi tomando forma, uma redoma impenetrável que trancafiou o sujeito de modo inacessível. De longe ele parecia comum, sempre.
Os que chegaram aqui devem perguntar como é que eu entrei em choque com uma mudança dessas se nem mesmo houve um dano físico, bem, a transformação do rapaz foi curiosa, o problema foi a seguinte vez que eu o vi.
Ontem, ao olhar no espelho.
E pior, as redomas se multiplicam, e o que vejo são mais e mais seres-armaduras andando por aí como se nada fossem.

Algumas Telas

Uma janela e começa a aventura, cliques alucinados focariam o passado, o desespero de uma linha discada e pop-ups descontrolados e coloridos, do tipo que provocaria um ataque foto-epilético nos mais sensíveis, e assim mais janelas atacavam as letras fortes e horríveis com siglas aleatórias e que não expressavam necessariamente algo, das siglas para alguma ideia do que ler e do que pesquisar guiava, guiando até o futuro com várias abas e o conteúdo centralizado, nossa quanta diversidade, ainda assim aprisionado a poucos sites como caminho para todo o conteúdo da vazante gileana, ainda se perguntava o que havia mudado. Computadores mais rápidos? Pessoas mais lentas. Temas mais sofisticados e cheios de transparência e efeitos? Pessoas mais rudes e menos saudáveis, e aquela proporcionalidade inversa incomodava, perguntava se a diferença entre um Pentium e o Core i7 residia em que o primeiro coincidiu com a época de sua primeira namorada e o segundo com o seu primeiro divórcio. Não, prometeu a si mesmo que não cairia na lábia dos nostálgicos, não seria um desses vangloriadores do isopor, sempre foi assim, pior pra alguns. É. Ou não. O receio vinha, algo havia de muito errado naqueles dedos acariciando telas brilhantes que se fechavam para socar algum opositor humano.
Humano.
Pensou que a centralização pega o ser, alimentando a sensação de supervalorização, exato, e isso no fim acarreta a infelicidade, era mesmo isso? Essa linha tão simples e tão irresistível? Não tinha certeza, restava guardar um sentimento de suspeita no bolso, talvez do lado do seu smartphone, assim teria munição suficiente para ignorar as crianças jogadas nos cantos, que já faziam parte das construções chamuscadas de qualquer lugar. Poderia ser um resquício do que chamam de “culpa capitalista”? Tinha receio de pensar nisso e voltar a tempos colegiais, em que jogar a culpa no sistema – desde a tela azul até a tela chiando das televisões e das respostas – resolvia. E lutava, lutava para não cair no ciclo, e o sentimento voltava, e engolia. “Deixe que façam por mim”.

O Exercício Da Futilidade

Futilizando.

_É aquela vontadezinha que dá pra não fazer nada com.
_Quando tudo está bem ela surge?
_Urge.
_Como um touro.
_Uma vaca, uma vaca da insatisfação.
_Insatisfação?
_É, a futilidade é o estado da graça narcisista.
_O fim das necessidades.
_O fim.
_Seria este mais um ensaio sobre a futilidade?
_Esta seria mais uma futilidade, pois então.

Pérolas rolando numa extensa manta de seda importada poderiam ilustrar o início e o fim daquele diálogo, era esteticamente agradável, macio, seguro; porém não exibia o núcleo útil, não era de necessária existência, sabe? É o tipo de situação que vive-se quase que como não se vive, há quem use para ferir os outros que não sentem a carência do vazio, outros que usam esse vazio para esfregar na cara, ou pior, os que usam o vazio como referencial de vida. Em fato, o que é essencial?

_Mas os limites do que é ou não descartável são mais amplos do que o eu acha.
_Acho que se espremermos todos os limões vamos acabar nas necessidades humanas mais básicas.

Realizado um projeto antropológico: Três sujeitos com vidas parecidas, sujeitos urbanos, trancafiados em casas de tamanhos e cores iguais, a diferença seria o abastecimento, um ficaria só com o necessário para metabolizar, outro ficaria com livros, e outro com todo tipo de entretenimento – incluindo itens na categoria de “fúteis”. O primeiro enlouqueceu e desaprendeu a viver em sociedade, o segundo ficou lendo e lendo, criando mundos e assim socializando-se consigo mesmo, já o terceiro nem percebeu o tempo passar, relatou que ficou distraído demais jogando Angry Birds.