Construtor de Personas

O encurralamento de seus fundamentos era o que renovava sua vontade de viver, das filosofias de vida que teve, todas foram efêmeras, principalmente aquelas que se propunham como definitivas e irremediáveis.
Seu trunfo era semi-material, uma chácara ou sítio, não preocupava-se em definir, era matematicamente moldado para um sonho no cerrado e fora dele também.
A entrada era uma estrada com paredes verdes, ipês brancos de um lado, amarelos do outro, blocos de rochas locais (algumas fagulhas de semipreciosas auxiliavam a composição) ladrilhavam a estrada que findava num portal, também natural, em que um jatobá fundia sua centenária copa com a de um majestoso pé de óleo, à leste um gramado para olhar, à oeste um jardim a pedido da esposa, hortênsias, azaleias e primaveras intercalavam-se.
O vento fresco entrava na casa de madeira, um andar e muitos quartos, banheiros, salas, típica estrutura que remetia a colossais jantares em família, todos alegres para aquela foto, quadros com pinturas de frutas e pássaros permeavam os ambientes e davam noção de como deveria ser a atmosfera do cômodo.
Árvores frutíferas multiplicavam-se no fundo do terreno, todas com galhos pendendo, sempre carregados, um ar pronto com notas doces e um panorama silvestre magnífico que emergia dos limites daquela propriedade, macacos, tucanos, jaguatiricas, araras, cores que paralisavam qualquer espectador habituado ao cinza.
Não herdara de beneficiado ou privilégio, porém não sentia apelo de exaltar algo como “próprio suor” ou esforço somatório.
Acreditava que era o resultado de suas quebras, de suas renovações, era como se cada canto representasse uma de suas possibilidades, não projetou para ser assim, a claustrofobia era só lembrança de agouro, gostava de enxergar sua transitoriedade, recebia impressão de que vivera muito, a seu modo.
O tempo arrastaria todas as alegorias para o zero, porém ali não, cada molécula do tal lugar era dotada de particularidade a tal, que mesmo passando por outros agrupamentos e dinâmicas sempre seria de lá.

Juízo

Toda vez que nasce algo em meio ao cinza uma festa acontece, pode ser uma celebração solitária que finda numa tímida exclamação ou verdadeiro festival convulsivo que acaba em tragédia, e isso não pode ser impedido – qualquer esboço de fazê-lo é inútil – o verde brilhante que surge sobre a queimada, um bebê que emerge depois de uma hecatombe, um riso sucedendo muito choro; esse tipo de pós-alegria é claro motivador e inspirador, não é musa inatingível ou meretriz de carreira, é o susto, a bolha que estoura.
_E rompi-me num ataque de bondade espontânea e fluida.
_Tudo isso por um presente chulo?
_Não era. Sabe a origem desta precipitação?
_Não. Conte-me.
_Rolava em tapetes persas de salões monumentais por diversão, desprezei o soneto, tinha repulsa pelo quadriculado e etiqueta. Poderia ser uma fase de rompimento, descobri que era etapa e que o tal cisma viria hoje.
_Por causa de um objeto?
_Não a matéria em si.
_Prossiga.
_E naquela ânsia particular pelo particular eu conduzi o fio da minha juventude. E pá, cortou-se.
_O que era?
_Um anel.
_De casamento? Que romântico.
_De castidade.

Cifracine

_Aqui. O roteiro-rascunho do meu novo filme:

“ZUMBIS: O APOCALIPSE

VILÃO/ANTAGONISTA: UM PH.D. COM TREJEITOS AFEMINADOS CUJA PRINCIPAL ALEGRIA É CORTAR CABEÇAS E EXTRAIR CÉREBROS ENQUANTO DIZ: ‘É DAQUI QUE NASCE DEUS!’

MOCINHO: PASTOR ANGLICANO SOLTEIRO, COM MÚLTIPLOS RELACIONAMENTOS OCULTOS.

CENÁRIO: VILA TRADICIONAL EM TRANSIÇÃO PARA CIDADE INDUSTRIAL.

ENREDO: MALDIÇÃO. ZUMBIS. ZUMBIS MORREM.

INVESTIMENTO: ALGUNS MILHÕES.”

_Não gostei.
_Eu sei, não é original, mas vende sim, eu aposto que vai gerar milhões, nada que uns virais, hotsite, promoções e festa-divulgação não resolvam.
_O problema não está no desenvolvimento, no enredo.
_O que foi então?
_O vilão.
_Vilão ué.
_Pois então, vão nos acusar de homofóbicos e também de preconceito contra ateus, seria um bafafá que afastaria os “formadores de opinião” e os pseudinhos que deixam os olhos brilharem com um filme de conceitos de isopor.
_Hm. Mudo ele então.
_Outro problema. Tem que mudar o “Mocinho”.
_Por quê?
_O pessoal da anglicana pode sentir ofendido, o trocadilho do nome é terrível, se quiser passar, mude.
_Mas aí a película perde o sentido!
_O problema não é meu.
_Um minuto.

Os cinemas lotaram com a estreia de “Zumbis e Gostosas”.

Sonhos Lúcidos – 3

Era um sonho azul. Eu voava entre céu, horizonte e oceano, variações de azul e eu. A noção de gravidade era mais leve, talvez por isso eu planava sem esforço.
Criei ondas, tornados, tempestades, contudo a calma era fixa. Azulada a minha visão mundo, paz era o que não faltaria.
Eu ia para frente porém não havia espaço-tempo.
Havia azul.
E um aspirador sugou o azul. Um aspirador? Não.
Um despertador.

Partido partido

Um debate acalorado em mais um fórum na internet:

Usuário 1
“O passado do candidato alfa é um dos maiores estandartes de sua incompetência, desperdiçar o voto nele é assinar o atestado de óbito do Brasil, seu pensamento extremo conservador é sentença para o desenvolvimento nacional e sinônimo de falência da nossa já deficitária educação. Não visto a bandeira dos comunas, mas esse alfa, tomem cuidado com ele.”

Usuário 2
“Sinto que o querido amigo @usuario1 carece de fontes alternativas sobre alfa, seus mais de cinco biógrafos pintam facetas sempre subjetivamente distorcidas, sua trajetória política é de impecabilidade exemplar – tão necessária em dias sombrios como estes -. Alfa é claramente mais competente que gama para ocupar a presidência das nossas terras, não é preciso ler a verdade para conscientizar-se do fato.”

Usuário 1
“@usuario2 não seja infantil, alfa era um claro terrorista, não um ativista como profetizam aos quatro ventos, gama é novo na política, porém apresenta um projeto – o projeto – de candidatura mais compatível, mais consciente, com a nossa funesta e degradada realidade. A bandeira de gama é, em suma, pela educação. E alfa? Diz defender a família. Duvido. Como alguém que casou sete vezes pode entender de família?”

Usuário 2
“@usuario1 , o infantil – com todo respeito – é o senhor, um mero boneco manipulado pela mídia que aceita informações vomitadas sem o menor senso crítico. Defender gama – se você leu a verdade – é um ato tão torpe quanto apoiar o nazismo.”

Usuário1
“@usuario2 Não sabe discutir, não desce pro play. Apelar para um clichê suástico é sinal de transposição emocional. Não reconhecer uma superioridade tão óbvia de gama sobre alfa é cegueira, burrice.”

Usuário 2
“NAZISTA!”

Usuário 1
“COMUNISTA!”

Usuário 3
“Olá, o clima parece estar tenso entre os amigos @usuario1 e usuario2.”

Usuario 1, Usuario 2
“Onde você estava, @usuario 3?”

Usuário 3
“Eu estava lendo sobre história. Suponho que preciso ler mais.”

Pavor

_E o seu maior medo, qual é?
_Sério? Sessão infanto-juvenil?
_Você tem medo de sessão infanto-juvenil?
_Não. Idiota.
_Teme idiotas então?
_Oh, Deus…
_Eu já ouvi de gente que respeita Ele, mas terror…
_Não é isso. Você não entenderia…
_Ah, medo da falta de conhecimento!
_Você é muito burro!
_Burro é você que não sabe responder sequer o que te assusta!
_Vá procurar o que fazer.
_Tem medinho da inércia! E já estou fazendo algo.
_(Olhos revirados)
_Descobri: você tem medo de ter medo de ter medo.
_Falou, Legião Urbana.
_Por que você sentiria pavor do Renato Russo? Ele era um gênio.
_Isso é indubitável.
_Sua fobias?
_Exato! Tenho terror de tudo e de tudo tenho terror. Estou tentando trocar de time, tiro, tara e todo mundo.
_Uau. Medo do medo do medo do medo do medo do medo. Incrível. Seis níveis, vou anotar.
_Inclua isso nas suas anotações.
_O quê?
_Seu futuro trauma.
_Qual?
_Se eu tivesse medo do medo como eu sustentaria o medo inicial se ele é coberto pelo segundo que tende ser mais forte?
_Tenho medo!

A República Das Frases Inacabadas

Primeiro: Não nasci aqui, acabei de chegar, por isso vou narrar isto antes que eu seja aculturado com o estranho hábito das frases incompletas deste povo.
Geograficamente falando não há o que acrescentar por aqui, talvez mais um poste, porém não é meu melhor pedaço cognitivo. No primeiro cumprimento notei a falta de comprimento:
_Olá, seja bem-v.
_Obrigado. (estranhando)
_A nossa república é bastante, aqui você encon, porém é preciso fazer um, assim, depois de aprovado você, quer tentar?
_Ahn, tudo bem. (estranhando o estranho)
Levaram-me para uma arena e do nada papéis caíram de um buraco no teto que ora parecia ser de uma camada só. Só depois de respirar é que pude entender, eram requisições e provas.
Exercícios com letras faltando, equações sem incógnitas, desafios lógicos visuais faltando dados, era um pesadelo. E depois de meia hora tentando resolver:
_FIM DO!
_Olá?
_VOCÊ, VAI PARA O OUTRO!
_Onde?
Não precisei mover-me, o solo fez isso por mim e uma máquina lançadora de bolas começou a atirar, operando a coisa estava o mesmo jovem que gritara comigo.
_SUA MISSÃO, PEGAR, PONTOS.
Na maior rapidez que minhas pernas alcançavam, alcancei uma bola.
Outro grito:
_PENALIDA!
E agora?
Algemas e arrastamento. Fui para um conselho, júri e juiz.
_ESTE HOMEM É DE PORTANTO REPROVADO?
_SIÃO!
Não era um sonho, eu só queria entender o porquê, a luz apareceu e eu clamei:
_PRECISO DE UM INTÉRPRETE!
_PEDIDO AC!
Uma moça com óculos mais grossos que seus lábios e com cabelos esvoaçados conversou comigo, eu perguntei como ela poderia viver tanto tempo ali e outras coisas, ela contou que vivia num quarto com tudo que precisava e contato com “o mundo de fora”, e o fato deles serem uma república é porquê não fazia sentido existir oposição, era considerada uma comunidade alternativa pelos outros, inofensiva, perguntei se iria querer fugir comigo, ela falou o que eu temia:
_Após entrar só se sai morto.
Tudo bem, então isso sou eu tentando escrever algo antes que minhas frases caiam em um inevitável processo de

O pequeno extra-escolar

Houve um dia em que precisei substituir uma professora de primário, de terceiro ano pra ser mais específico, era pra ministrar aulas de matemática, as três primeiras. Até aí tudo bem, era só ter pulso firme e ensinar a criançada, que por sinal foi bastante receptiva, não arremessava objetos no quadro ou pulava de uma carteira para outra.
Foi interessante constatar como cada criança lembrava um mini-adulto, como se elas não existissem mais em sua essência, talvez sejam esses tempos de super-informação de nenhuma formação e solidez, não tenho certeza, sei que vi emoções desenvolvidas em seres de 8, 9 anos, que tipo de sentimentos você deve pensar, hipocrisia, insegurança, remorso, ansiedade, psicopatia e outros mais, é, o conceito de “sentimentos” pode não se aplicar em alguns casos anteriores, se não gosta use “anima e animus” então.
A sala era pequena e a estrutura não convencia; pelas circunstâncias o leitor pode ter deduzido que eu fui preencher buracos numa escola particular, pelo contrário, era uma municipal, simples e destruída. Rostos cansados e sorrisos ocultos traçavam o clima daquele ambiente.
Entre as aulas você vai percebendo quem precisa de mais atenção, de menos, ou de nenhuma, o que me deixou curioso foi um garoto no canto, mais um desses alunos-de-canto, solitário, pensativo, parecia anotar o conteúdo, contudo não interagia com os outros alunos, então fui conversar com o menino durante o intervalo:
_E aí cara, tudo joia, gostou da aula?
_…

Também é notável que conversar com infantes não era habilidade natural minha.

_Mais ou menos professor.
_Ihh cara, que foi, pode falar aí.
_Eu não, você vai falar pra todo mundo.
_Não poxa, pode dizer, eu só venho hoje e nunca mais eu apareço aqui.
_Sério?
_É, cara. Olha pra mim, acha que eu tô mentindo?
_Não, não.
_Então.
_Pois é.
_Desembucha rapaz.
_Professor, eu acho que não faço parte deles…
_Da sala? Normal isso acontecer, também não tive muitos amigos de verdade na sua idade.
_Não.
_Então quer dizer o que?
_Eu acho que não faço parte deles…
_Deles quem?
_Dos humanos.

Pausa.
Caso eu não tivesse instrução e bagagem de cultura de ficção científica e de sociedade em geral eu reagiria com aquela cara de medo, aposto que por uns milésimos ela pode ter aparecido, mas nada que o garotinho detectaria, tudo bem, ele criou um universo para ele só para poder sobreviver ao ambiente hostil do primário, alguns fazem isso conscientemente como ele, outros inconscientemente, como os que acham que são amados por todos. Tudo bem, então era entrar na dele e delimitar a imaginação do moleque, vamos lá.

_Hmm, por que você acha que não é um ser humano?
_Eles são tão diferentes de mim, falam demais, sorriem demais, não consigo conversar com ninguém e me sentir bem com isso, sempre me olham de um jeito esquisito, enfim, eu sempre soube que isso era um sinal.
_E o que respondeu sua dúvida?
_Ah, um monte de filmes, livros e um da minha espécie que apareceu no meu quarto.

Outra pausa.
Um amigo imaginário, provavelmente. Tudo ok, vamos prosseguir.

_Isso não te assusta professor?
_Não, sabe por quê?
_Diga.
_Também não sou um humano…

Fiz a cara mais misteriosa que pude, o menino ficou tão feliz que pegou o caderno e começou a escrever.

_Tá escrevendo o quê aí?
_É meu diário de bordo! Vou usar quando juntar todo mundo da minha espécie.
_Isso, e quando o fizer, mande-me um e-mail.
_Valeu professor!

O intervalo acabou, ele foi pra sala e eu fui embora, pensando se tinha dito a melhor coisa, fomentar a ilusão do garoto poderia ser um problema futuro, não importa, ele queria isso e com certeza essa ideia vai sustentá-lo até o ginásio ou até a morte do papai-noel.
O engraçado foi ver no céu algumas estrelas mais douradas naquela noite, devia ser uma dessas chuvas de meteoros.

Sonhos Lúcidos – 2

Um bolo gigantesco de baunilha.
Eu não gosto de baunilha.
Era composto por um sistema de galerias e andares, cada andar ia reduzindo – como num, bem, num bolo – e as galerias estreitando-se. O céu era branco e o chão, o chão era o chão chato e chuvisco de sempre.
Na primeira porta todos os meus artistas preferidos, pareciam falar algo, eram conselhos, falavam ao mesmo tempo, era caótico. Subi num escorregador inverso (era de chantili) para o segundo andar. Vazio, espelhos e o escorregador.
Sabia que era uma arapuca, foi. Fui para o último andar enquanto o escorrega-elevador se desfazia, não me preocupei em como voltar.
Teto baixo e tremendo, um pedaço sai para cima, alguém está comendo o bolo comigo dentro!
Era eu. Vi minha faringe e acordei. Endoscopia é isso.