Sol das 15

Desse horário ninguém falava, era sempre o horário esquecido, sol bom da manhã, sol infernal do meio-dia e sol despedindo às 18h. 15h não.

Os braços à mostra eram escuros, empoeirados, com uma extensa coletânea de roxos e cascas recentes, não eram fortes ou bonitos, eram firmes, estavam com fitas mais visíveis, fitas da água que escorria do balde furado.

Era o único balde num raio de 300km, a única mãe num raio de 150km e a única corajosa num raio que abrangia toda a vila.

A água era suja e só uma parte dela chegava, tão suja quanto as esperanças do povo dali.

A panela tinha um pouco de feijão com muita angústia sobre o futuro, fervendo.

15h era o horário que tinha livre, era o horário que somente as crianças dormiam, na maioria das vezes de fome.

Os braços não questionavam, os olhos surpreendiam-se com algumas carcaças novas, nunca com uma nova ruga ou novos panos.

Nas 15h percebeu que as gotas que caíram do balde – antes de vazar do reservatório, vazavam dos olhos – formaram um rastro verde.

Verde.

Talvez limpar as esperanças e sentir esse sol tivesse um significado maior.

Desse horário ninguém falava, e era melhor assim.

Fluxo 31

É rara a noção de identidade que perdure a todo tipo de abalo, de estrago e perversidade, é rara a alma que se contém sem vibrar conforme a fúria que a vida condiz, é mais fácil ser maleável ou transformável, não dão indicações se é ou há o certo, há indicações sobre a probabilidade do erro iminente, da voz insistente, dos trinta dias ou minutos que assolam os que estão sendo maleados no tempo e no espaço; ser rígido e inflexível gera diferença, mas também implica o mudar com abalos, a diferença reside na pressão a ser aplicada, quando esta é considerável pode-se obter uma bela capa, um diamante, ou ao menos algo que aparente ser um diamante aos olhos alheios. Olhos que poderia enxergar para dentro, mesmo que para as vísceras, talvez eles reflitam o estado da alma, olhos que trariam mais identidade do que fariam julgar e pressupor erroneamente o momento de personalidade do que está a frente, tudo em busca da não busca do que vier à tona, daí reside uma prática relativamente perigosa que é pensar para si mesmo sobre o que você viveu, sobre o que faz ser sua vida, talvez tal momento seja o mais sombrio para muitos que preferem não fazê-lo, contudo tal prática não tem retorno, é de mão única e impossível de retroceder, uma vez nela sempre nela estará, e talvez daí resida a desgraça da face humana, da vida em geral, com certeza é só mais um fragmento de opinião, poeira espacial jogada ao vento? O que surpreende mesmo é a instabilidade e a inércia, estas ficam acima de qualquer identidade pré-construída.

Vigilância

Minha função era rastrear padrões de mensagens de texto que continham conteúdo inapropriado, era uma forma de censura, com certeza, mas em tempos como o nosso o que o povo queria era que a censura voltasse, não é mesmo?
Pois bem, foi criado um algoritmo com um banco de dados de termos e outras coisas como expressões “perigosamente ambíguas”, contudo o banco de dados não previa certas manobras, e periodicamente eu tenho acesso ao grampo central para selecionar mensagens como possíveis novos exemplos do que pode e do que não pode ser trocado em rede.
Eu acho engraçado o fato de que há gente que esquece que estão trocando mensagens dentro de uma rede privada e que há um intermediário, pensam mesmo que ninguém vê ou lê aquilo que escrevem em nossos meios?
Hoje foi um dia atribulado, a vantagem é que não preciso sequer olhar para o relógio, apenas para o monitor central com mensagens divididas em dezenas de categorias, idade, região, ocupação, número de CPF entre tantos outros fatores.
“Bom dia” “Tudo bem com você?” “BoMm DIaAa” “Comigo também e com você”
“E hoje, já foi?” “Será” “Provavelmente sim”.
Um suspeito.
“Provavelmente” o quê? Estariam tramando algo?
Suspender e censurar advérbios obscuros.
E nesse corta e costura eu passei o dia todo. Quase chorei com algumas mensagens, não preciso dizer de quem ou quais, na mesma proporção senti asco de algumas. Como podem expor coisas tão íntimas em algo quase público?
Fruto do passado, eu sei, os pais e avôs deles faziam isso, incentivavam isso e morreram disso.
Disto.
Olho para um quadro na parede, a segunda revolução sanitária.
Foi aí que se instalou a nossa nova vida e governo.
Depois de todos estarem cometendo suicídio involuntário, gordos, sedentários e expostos. Atrofia muscular e cerebral foi a maior causa de morte precoce.
E chegou o fim da minha jornada diária.
“Onde estaria o Josinho?”
Como?
Eu estou aqui.
Estaria.
Bloqueada.
Olho para a minha camisa, lisa e com a medalha brilhando.
Lustro mais uma vez antes de trocar de turno.

PartiuBomDiaPrincesinhaRumoAUmMilhão

 

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  • Fulano de Tal  Quero ver se não houvesse no país! #Independência[minharegião]Já!
  • Ciclano da Silva  E é por causa dessas cotas que o Brasil esta mais pior!
  • Beltrano Etc  Só roubar é o que esses caras sabem fazer!
  • Silvo e Silva  Aprendi a mudar a cor do meu facebook!

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– E o que vejo é mais do mesmo.

– O museu de grandes novidades?

– A destruição em série…

– É a única coisa que evolui.

– E fora isso?

– Fora isso?

– Fora da rede o peixe é menor.

– Fora da rede ou dentro, ainda é peixe.

– Peixe que segue o cardume?

– Peixes com polegares.

– Peixes que não estão nem aí.

– A rede nunca será o problema.

– Nunca.

– Se tem rede, tem peixe, tem destruição, tem asfixia.

Sonhos Lúcidos – 9

Creio que este tenha sido o mais consciente de todos os sonhos já relatados.

Consciente porque eu era o mestre absoluto dos meus sentidos e do meu universo.

Apareci numa sala transparente, eu parecia ser a fonte de toda a luz, era visível que o cubículo de vidro, vazio, flutuava em meio ao nada.

Então comecei a trabalhar.

Primeiramente desmontei as paredes, cada uma delimitaria uma importância, um domínio desta minha nova terra.

A parte inferior seria o mar, antes uma faixa de magma incandescente bem generosa. Convidei-me a nadar nesse magma, era um calor aconchegante e restaurador. Um cobertor de pedras, dezenas de cristais, toneladas de joias brutas fizeram o solo mais brilhante que já vi. Fiquei pensando na cor da água. Escolhi verde, que fluiu e lambeu toda a superfície, banhando e preparando o início do que culminaria em vida.

A parte superior seria o universo. Vi a chapa espessa de vidro derretendo a medida que esticava-se, improvisei alguns movimentos, era o maestro de minha própria orquestra. Escolhi mais uma vez camadas. A primeira seria de matéria negra profunda e silenciosa, seria a energia mais sombria e enigmática. Um vórtex invisível em meio ao nada – toda a massa poderia estar lá, e continuaria assim. Agora uma película de estrelas e nebulosas distantes, fantasiar galáxias e fontes inesgotáveis de energia. Quase terminando, pintei o firmamento com quatro estrelas colossais, cada uma portava uma cor que representava uma força fundamental da natureza. Várias luas para vários eclipses diários. E enfim o céu. Subverti a lei e coloquei o céu em prata. Prata e dourado, mas o reflexo não feria a visão, o aspecto predominante era de leveza, a leveza pertinente a todo bom céu.

Agora que o teto e o piso estavam prontos, resolvi recorrer as laterais.

Uma seria a lâmina das montanhas infinitas. A cordilheira que começaria no magma se encerrando somente em matéria negra. Assim, distribuí ventos e neve pelas terras. A vida começava a borbulhar. Morros pontudos, retos, mamilares e, por que não? De formas propositais – o morro onda, o morro cabeça de cavalo e talvez o meu preferido, o morro de luz – exato, limitar-se o estado físico não é característica daqui.

A outra – não havia direito ou esquerdo, havia vontade – seria a superfície das praias. Praias que entravam e saíam das montanhas, praias planas que poderiam dar acesso a qualquer lugar daqui. Praias de todos os elementos, de areia, pedras, fogo e plenitude. Serviriam para descansar olhares com formas simples e fluidas.

Estava quase tudo pronto.

Usei o poder das duas faces restantes para criar vida.

Plantas, as mais incríveis e que não eram só verdes ou fixas, as vidas se confundiam e misturavam-se conforme meu olhar. Não tive preocupação ou receio. Tudo vivia e sentia aqui. Tudo era ser.

Eu poderia dizer que havia esquecido que estava sonhando – o que é verdade. Fui lembrar-me disto agora, na ausência dela.

Acabou que na tentativa de recriá-la por aqui, a complexidade da obra superou qualquer maravilha do meu mundo.

Tudo

Comprimiu

E

Expandiu

Sem o meu controle.

Acordei no meio do big-bang.