Devaneio

Não vou mais mentir, contudo, eu não estou mentindo pra mim mesmo fazendo uma promessa irreversível que eu sei que não posso cumprir em tão longo prazo que corresponda ao fim de minha vida terrestre?
Acho que não, talvez se eu me isolar da civilização, for pro auto de uma montanha isolada, ter uma vida nômade, longe de seres humanos, eu consiga cumprir minha promessa, entretanto, vale a pena renunciar a tudo que tenho em razão de um objetivo de plástico? E ainda mais: como eu mentiria se estivesse só? Mas é essa a razão do meu afastamento. Se eu fizesse isso, porém, invalidaria minha promessa por não ter risco de descumpri-la.
Claro que não, eu posso mentir pra mim mesmo, como eu formulei no início dessa linha de pensamento, no entanto, se eu mentir pra mim mesmo posso mentir novamente para alguém dizendo que eu não menti, tendo sucesso em minha experiência.
Sucesso?
Falso.
Tenho consciência o suficiente para admitir que não conseguiria fazer isto e ficar em paz com meu cerne, então o que eu poderia fazer é testar ao máximo a partir de agora. E o que representaria a quebra da promessa que eu fiz? Acho que a minha cabeça cometendo um auto-massacre, “seu fraco”, “inútil”, “não consegue sequer domar os próprios devaneios”, e acusações do tipo. Entraria num funil de auto-crítica e auto-piedade, é.
Até o momento eu estou sendo forte, o tempo todo eu não consegui desfazer o que eu disse por estar enjaulado no meus próprios confins, por isso eu me prometi, sabia que meu inconsciente faria com que eu fabricasse uma maneira de satisfazer-me sem que eu percebesse previamente.
Todavia eu já havia vivido esta situação antes, o que me faz pensar que eu estivesse em um quarto plano, afinal de contas, o que eu queria fazer quando eu pensasse que pensaria pensar algo que faria?
Não gosto de rimas acidentais.
Ahn, onde eu estava mesmo?
Ah, dormindo, é isso.

– Vira pro lado, ajeita o travesseiro e fim de insônia. –

Ida e volta.

Na verdade, gostava de morar longe.
Porque no caminho, ele abstraía, observava, criava amizades, resolvia problemas, amava. Vivia.
O caminho de casa até qualquer outro destino era uma ilha temporal, uma espécie de segunda chance para resolver problemas pendentes, era seu santuário particular, e também o terror particular.
Quando naquele acidente em que várias pessoas morreram e o sangue pintou as paredes do ônibus capotado.
Porém era um risco necessário, era um divã automático, dava tempo pra pensar com paciência no que ia dizer pra solucionar aquela briga do dia anterior, por um motivo bobo.
Ouvir uma música e tentar ter o máximo de imersão, mesmo que uma senhora ao lado não pare de contar sobre a felicidade de ter seu primeiro neto.
Voltava pra casa e repetia o processo, estava satisfeito de pensar, de ricochetear considerações no cubículo consciente. Sua mente estava sã por causa dessas viagens, sabia disso.

Pule da ponte

_Não vale a pena viver.
_A ponte mais próxima, bem aqui.
_?
_50 metros de profundidade, você vai endossar as estatísticas de rio preferido dos suicidas, a cidade só é lembrada por isso.
_Feito Cuiabá na previsão do tempo?
_É. Você não mora aqui?
_Minha, minha…
_Traição é? Motivo mais besta pra se matar, rapaz.
_Ah, e agora você vai dar uma de Simpson dizendo que mulher é igual a cerveja, que depois de uma vem outra e tudo mais.
_Não cara, não acho que elas sejam produtos descartáveis, sou meio feminista até.
_Homem feminista?
_É, nunca viu não?
_Ih rapaz, tu é submisso, deve ser amarrado na coleira.
_Já sofri demais tentando dominar, agora relevo, no final das contas você fica velho e só obedece.
_Nem é assim, meu avô, por exemplo, ainda voa de galho em galho.
_E ele deve ter tentado suicídio, não é?
_Tomei coragem por causa das tentativas dele.
_Não falei? Homem só domina o papo, a conversa, no final das contas o que manda é a genitália feminina.
_A buceta?
_Não precisava falar assim, mas é.
_Vergonha é? Bu-ce-ta.
_Você me entendeu bem.
_Buceta.
_Hei, você não ia pular da ponte?
_Buceta.
_O papo tá estranho hein.
_Você é mandado e adestrado, nem um palavrão você fala mais.
_Na verdade, não. Não acho necessário falar palavrão pra usar isso como extensão da minha masculinidade.
_Hei, eu não falo palavrão pra demonstrar saco-roxismo, se fosse assim minha irmã seria um armário de dois metros de altura.
_Ah, vá lá, quantos de nós nunca tomamos um porre e demos uma de ogro pra impressionar uma dessas menininhas?
_E pulamos de uma ponte.
_Mas você nem vai mais fazer isso, já se abriu e falou seus problemas.
_Que conversa é essa de se abrir? Tá me estranhando?
_Sou psicoterapeuta, tome meu cartão.
_E o que diabos um psicoterapeuta faz no parapeito de uma ponte?
_Eu ia pular.
_Como assim?
_Praticar nado, sou viciado em adrenalina.
_Ah, ok, e eu sou viciado em necrofilia fluviométrica.
_Também já fiz muitos neologismos quando jovem.
_Quantos anos você tem?
_35, por quê?
_Você parece que já usa expressões como “na minha época”.
_Como se jovens do seu tipo não fizessem isso.
_Ei!
_”Não me estereotipe blábláblá”… Todos iguais, você tem 15?
_16.
_O caminhão!

Passou.

Os dois pularam da ponte, o jovem e o adulto conseguiram se salvar, cada um foi pra uma margem oposta, não se viram mais e ficaram rindo do que aconteceu. Sem suicídio nenhum, que chato.

Nó familiar

Contaram pra mim esses dias que um rapaz enlouqueceu tentando estabelecer um raciocínio genealógico tamanha a confusão; é um desses sujeitos que é infeliz o suficiente pra não controlar os próprios impulsos e sai fazendo o que dá na telha. Tudo teve início quando ele namorou uma mocinha daqui, uma dessas de família, toda recatada criada com severa disciplina e amor batido com leite e pera.
Saíram juntos, começaram um relacionamento, a menininha se mostrou profunda conhecedora das artimanhas anatômicas e sua reputação perdeu a primeira e última sílabas quando apareceu com um barrigão.

_Tô grávida dele.

Claro que sobreviver a avalanche de tiros disparados por tios e primos não foi uma tarefa fácil, mas nosso herói foi amparado pela sogrinha, que se jogou na frente dele evitando que a saraivada de balas prosseguisse.

_Não façam isso, ele é só um menino!

Conversa vai, conversa vem e o garoto acaba deitando-se com a senhora também, sabem o que o ditado diz sobre panelas na melhor idade não é? E o tempo passava com uma embuchada, outro ameaçado e outra tendo dias de satisfação que estavam há primaveras desaparecidos.

O menino nasceu! Que belo rebento nós temos aqui. E que bela confusão! A coroa estava, como dizem nossos hermanos, embaraçada e tudo mais. Do jovem rapaz, sem sombra de dúvidas, mas isso ninguém suspeitou. Então, hoje é aniversário da vovó Geraldina, seus 65 anos de sorrisos e bondade!

Almoção, reunida família e o rapaz vai ao banheiro, mas esperem, a porta está semi-aberta, há alguém espionando quem passa pelo lado de fora, uma armadilha? E é com pesar que eu comunico que a vovó comeu o caçador. Era a vez da mãe da moça parir, a vó aparecer com um abdômen proeminente foi o espetáculo da vez. Leitores espertos e avisados mais o protagonista da história sabem que é o pai.

E o pai de três filhos começou a raciocinar:

_Eu, tecnicamente casado com minha mulher tenho três filhos de mães diferentes sendo o mais velho meu filho, meu neto e meu bisneto, filho da minha mulher, sobrinho e irmão do meu segundo filho, neto da minha sogra, sobrinho-neto e irmão do meu filho mais novo e bisneto da mãe da minha sogra, o filho do meio é irmão da minha mulher, meu cunhado, filho da minha sogra, sobrinho do filho mais novo e é meu neto também e o filho mais novo é irmão da minha sogra, padastro da minha mulher, tio do meu filho do meio, tio avô e irmão do meu primeiro filho e filho da avó da minha mulher.

E pimba, foi passar o resto da vida tentando entender o que disse.

Tum Tum

_Quem te mandou o que?
Aquela chacoalhada boa de quadris tortos e umas lágrimas depois por estar sozinha. Ouvir música daquele jeito era dilacerante, sempre esperando alguém que nunca viria, cantar o amor já vivido que feria e retumbava o coração desfalecido. Espiar as atitudes cheias de crendices que estava fazendo, mandinga daqui, trabalho dali, vê se meu santo me arranja alguém que eu sei que não vai vir.
Ô, Santin.
Os aromas doces de velas e incensos enfeitavam o quarto numa bruma azulada, cheia de paixão de Iemanjá, e dos seus orixás que vira na tv, era muito bonito tudo aquilo, o triste era acabar com aquilo, no final das contas de Padin Cico e dos búzios jogados ao céu rosado do vento fresco, ela não queria parar, queria é mais ser mística solitária, rainha do território terreiro tórrido.