Lentes e Doces

Era sobre ouvir mais uma discussão, começara muito jovem, com cerca de 8 anos percebera que falar era mais do que passar uma mensagem simples, que poderia haver ganhador e perdedor até nessa situação, ao menos foi o que aprendeu, o que lhe disseram que era certo, desenvolveu ânimo em tentar perceber como entrar em uma situação do gênero, pra treinar sempre e das mais variadas maneiras aquele jeito diferente de falar.
Parecia que deixavam de ser pessoas, de ser alunos, pra ser algo mais, ganhando poderes, projeções de raios, emoções que surravam e podiam terminar em briga, o poder da palavra e de como ela repercutia na honra, discutir sempre ficou no campo do que era ofensivo e do que devia ser praticado, aprendeu que discutir poderia ser ruim meio tarde, com 12, quando uma colega de sala não parava de soluçar por um comentário sobre a família dela.
“O que eu fiz?”
Passa tempo, gira roda viva, os artifícios foram se sofisticando, as palavras e entonações, a postura e o movimento das mãos, tudo que se era necessário para mascarar o que no fim todos que discutiam queriam fazer: Ganhar. Pelo menos a juventude do rapaz dizia tal fato, todo aquela pompa, toda aquela hipocrisia, era tudo jaula pessoal para no fim não acabarem se matando, o que muda das crianças para os adultos? As armas e a velocidade com que se podia matar. Com certeza era isso.
Atingiu o que ele julgava como a própria fase áurea de sua existência, ganharia todas as batalhas verbais daquele dia em diante, desenvolvera um instrumento próprio e impossível de ser mimetizado, seu grande orgulho secreto, o que tornaria qualquer discussão dali pra frente um grande exercício de quebra de tédio, esperando quem pudesse sequer arranhar seu trunfo:

Os Óculos Automáticos.

Ele começou fabricando com afinco um modelo simples, guardava no bolso toda vez que saía de casa, bem como o tempo instável dos meses de verão, nunca se tem certeza quando vai chover gente querendo começar uma guerra verbal. Era simples, anunciado o debate, sacava o acessório do bolso, colocava a armação e sua visão era dominada por dezenas de palavras que somente ele podia enxergar:

 

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Discurso vazio Determinismo Essa opinião não é sua Isso é um ataque ad hominem presta atenção no que você tá dizendo Sua maneira de falar equivale ao seu conteúdo Não é sobre o que você diz, mas como isso afeta quem ouve Houve? Atenção não é de graça
VOCÊ
SEMPRE
ESTÁ
CERTO
ISSO NÃO MUDA
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Bastava repetir o que via, na maioria das vezes os oponentes se perdiam nos próprios devaneios ou tentavam considerar algo que ele dizia, um grave erro.

Acabou que seus óculos lhe deram tanto poder e prestígio que virou o rei do mundo, até ser vencido por um problema de juventude. Uma moça que ele nunca conseguiu conversar, veio e disse para ele uma palavra só, como argumento. Algo que alguns já tentaram, mas não com o peso de importância que ele atribuía.

Os óculos viraram uma maneira de ignorar. Se o princípio era lidar com crianças, a lógica era agir com birrentos.

E a moça olhou bem fundo nos olhos do rapaz, de modo que os óculos desapareceram:

 

“Depende”

 

Pois bem, daí o rapaz percebeu que era mais feliz perdendo. Resolveu crescer e esmagar seus óculos, disseram que uns poucos mendigos de vitória pegaram as migalhas de vidro no chão.