Bola e mordida.

Vagarosamente o animal ia colocando pata por pata em um degrau, mais outro degrau, e foi aumentando o ritmo das passadas (ou patadas?) exponencialmente, estava com a língua para fora, deixando gotículas de saliva flutuarem no ar e sumirem no chão. A respiração e a frequência cardíaca aumentaram bastante, as pupilas estavam bem dilatadas e cintilantes, o pelo curto estava uniforme e contribuindo para deixar o corre-corre mais significativo.

O cão não oscilava em subir a interminável escada circular, toda branca, chegava a confundir a percepção e provocar uma leve tontura; sua boca já estava aberta com outra formação, sua língua agora era reta e seus dentes amarelados ficaram à mostra, sua postura agora transmitia uma raiva enorme, uma vontade de estraçalhar e torturar quem fizera isso com ele.

Ainda no caracol sem fim daquele prédio, algumas reflexões básicas e primitivas atormentavam a cabeça do empenhado canino, “Vou ver meu dono”, “Ele é meu dono”, “Meu dono não me faz mal”, “Meu dono joga a bola”, “Eu pego a bola”, “A bola rola”, “A bola quica”, “A bola voou”, “Eu voei também”, “A bola caiu no chão do meio”, “Eu caí no chão de cima”, “Do meio”, “Na grama”, “No chão de baixo”, “Dor”, “Dor”, “Dor”, “Meu dono é mau”, “Meu dono é mau”, “Não é meu dono”, “Mau”, “Fez maldade”, “Fez maldade”.

Vale ressaltar que a língua nativa do bicho não era o português, isso é uma facilitação para que o leitor não morda este texto, bom destacar também que o fato de que em sua súbita mudança de humor o fiel companheiro do homem continuou balançando o rabo como se algo não mudara.

A visão do mamífero quadrúpede era dominada por um tom de cor: vermelho-rubi, o dono estava em estado de choque na sala, não sabia se ligava para o porteiro, polícia, política, pelo amor de deus quem pode me ajudar?

Bateram na porta, o rapaz foi atender, estranho, o som vinha da parte de baixo, ahahahahaha, quem arranharia a porta? Deve ser o bebê dos Alencar.

Vingança:
-Mordida no pé.
-Chute no cão.
-Mordida no braço.
-Soco no cão.
-O cão não larga.

Depois de muitos gritos e barulhos um dos integrantes da família Alencar, ou simplesmente um vizinho, rompeu a porta e separou os dois. O rapaz estava todo machucado, o cachorro passou por uma mudança de estados: Choque, neutralidade, percepção, piedade.

Chamaram o auto-atendimento, viram pedaços da porta quebrada perto do apartamento, lá dentro encontraram um animal doméstico que lambia as feridas do dono.

Que porquice.

Então tudo perdoado agora e haviam telas de proteção em todas as janelas, bom para impedir que essas bolinhas pequenas escapem por onde não devem ir. O que saiu perdendo mesmo foi o síndico, que não tinha mais argumentos para defender que é possível ter animais de grande porte convivendo harmoniosamente em um prédio.

Sujeitinho

É o típico otário que opina e faz todos na roda rirem, que acha que lugar de pobre é na cadeia e que “vagabundo atrasa a gente”. Tipo genérico de mané que tem uma visão de mundo mais estreita que a de um cavalo “lugar de mulher é na cozinha, quem tem dinheiro é porque deu duro e quem não tem é porque é acomodado”.
Aquele tipinho que ri de documentários e afins que mostram crianças com fome ou indo para uma vida miserável, que diz “se ferrou” quando alguém se acidenta e/ou morre.
Que chora quando perde alguém e trata com desprezo quem chora, realmente considera a possibilidade de existência de pessoas com mais importância que outras de modo geral.
Reza quando se sente sufocado e ri da religião enquanto xinga “as crentaiada”, que diz não ser consumista enquanto faz uma ligação no último modelo do aparelho da maçã.
Diz que arte é coisa inútil, que liga seu som automotivo pirata no último volume e que “todos político é corrupto”. Que enche a cara, faz merda e culpa a sociedade (palavra, por sinal, avançada para ele).
Jura que seu umbigo não é o centro do mundo para justificar porque atropelou alguém e fugiu. Treme compulsivamente enquanto tenta ver algo de útil para sua consciência. Percebe que sua postura não serve muito para enganar nem a si mesmo. Resolve rir e agredir porque não quer nem saber.
Termina numa sarjeta emocional e bebe o esgoto como se fosse água.

Dupla

São cinco anos de diferença de um para o outro.
Isso já foi o suficiente para gerar um violenta discordância na formação e personalidade de ambos irmãos. O primeiro foi criado de forma rígida, centrada, disciplinada e sem frescura, quase um treinamento infanto-militar; o segundo já recebeu mais tolerância, liberdade, direitos, vontades, caprichos, dizem que também recebeu mais amor.
Cresceram expondo o que foi feito a cada um, o mais velho só teve uma namorada na adolescência, preferia casa e música baixa à balada e som ensurdecedor; o segundo teve sua mocidade cheia de mulheres, bebidas, viagens, sensações, gritos e experiências.
Viviam se atritando por motivos óbvios, e o primeiro sempre dizia que, no final, a vida educaria o segundo. A mesma universidade, o mesmo curso, o mais velho se formou enquanto o mais novo se entorpecia numa rodinha de calouros.
Aos 50 anos o primogênito estava bem casado e com dois filhos, nenhum puxou ou gostava do tio malucão, o filho com 14 perguntava para o pai se o tio dele possuía alguma síndrome ou trauma, o pai ria.
No enterro do pai todos choraram e os dois finalmente se abraçaram, a raiva parecia ter ido com o velho. O único ressentimento sobrou no mais responsável da dupla “Eu ainda não acredito que puderam tratar esse desastre ambulante melhor do que eu durante toda nossas vidas”.
_João, o pai deixou uma carta aqui.
_Deixa eu ver, José.

“Filho, só conseguiria dizer isso de forma póstuma: Você é filho de nosso vizinho, por isso sempre fui frio contigo. Vá abraçar sua mãe, o filho predileto (e o único dela) é você.”

Stop

O sol estava exibicionista hoje.
Todos exerciam muito bem o emprego voluntário-involuntariado de reclamador oficial da cidade.
Tempo, saúde, política, futebol, música, humor, o catálogo de fragmentos de generalidades reclamativas era extenso e acessível, bastava saber se comunicar, nem precisava de outra pessoa, as paredes possuíam uma extraordinária capacidade de absorção de mimimis.
Os humanos são seres tão meigos.
Coisas e máquinas também externavam reclamações, uso demasiado, abandono, sobrecarga, deformações; em protesto tudo quebrou.
Descemos de nossos meios de transporte, saímos de nossas casas, paramos de trabalhar. Agora a chiação era em comum, a diferença ficou no pensamento temporal de cada indivíduo.
Os do passado repetiram “se eu tivesse”, “eu devia ter”, “não fiz isso”, “por que eu deixei acontecer”, analisavam como as cadeias de acontecimento terminaram naquele rumo e conseguiam, no máximo, suspirar.
Os do presente não falavam mais do que uma dúzia de palavras, pulavam pelo trânsito, moviam objetos, arrastavam pessoas, assaltavam estabelecimentos, quebravam janelas, distribuíam palavrões e abraços de fim dos tempos. Era aquele grupo “Muito barulho por nada”.
Os do futuro falavam, faziam e choravam. As crianças só conseguiam espernear. Os adolescentes, sempre utópicos, profetizavam uma nova sociedade cheia de justiça, amor e paz. Os que se consideravam adultos e do futuro estavam desesperados estocando água, alimento, combustível, baterias; estavam prevendo um colapso social derivado deste lapso eletro-mecânico.
Nenhuma mídia funcionava, o que restou foram publicações escritas à caneta apressada que se tornaram o novo telefone-sem-fio mundial.
A força policial teve seus dias de glória trabalhista (ou não), tudo acabava se resolvendo na base do porrete e da pistola. Registraram cerca de cinco milhões de mortes em conflitos, ataques, infartos e afins.
Isso hoje.

Não soubemos quem tomou posse do controle mundial, se foi planejado, se foi um grande acidente, se era possível evitar, se foi combinado entre possíveis e novas revolucionárias inteligências artificiais.
Às 18h30min no horário do Pacífico, o fluxo energético cessou. Pesquisadores reclusos e isolados já elaboravam teses de dinâmica social e interferência das manchas solares.
A problemática residiu no fato de que tudo ligou e ninguém quis notar. Fúria sensual, mantinha todos entretidos guerreando à vontade.
Não reclamavam mais.
Hoje foi um dos dias mais longos que eu vivi, aliás, tive de procurar abrigo porque minha casa foi bombardeada.
Espero que amanhã seja melhor.
E que possamos sair desse transe.

Dissolução

_O paradoxo da existência se dá na medida em que você concretiza suas ideias para perceber que elas não existem.
_Discordo, penso que não podemos resumir toda a complexidade e detalhamento da existência em uma linha de negação ao que se adquire ao longa da vida.
_Porém tal negação é a admição de mais cultura e assim a consequente não alienação e estagnação cultural, gerando a busca incessante e necessária de mais sabedoria.
_Não necessariamente. Eu não preciso negar o que descobri previamente para poder deslocar meu cerne a um patamar mais elevado em relação ao que já estou, esse ciclo de aprendizado e renegado se constitui apenas em pessoas de alma pequena e mesquinha.
_Citar Fernando Pessoa e jorrar motivacionalismo barato não vai fazer do seu pobre discurso mais que um amontoado de excrementos matinais do mais torpe dos animais já catalogados pelo homem.
_Todo adubo é bem-vindo perto do transtorno bipolar apresentado pela vossa lastimável e degradante retórica.

_Sua mãe.
_Como?
_Sua mãe cometeu um atentando ao universo. OH DEUS! PORQUE UMA MERETRIZ PENSA QUE PODE ABANDONAR SUA PROFISSÂO?
_Ora, que ousadia a sua, logo você que vem de uma família de suicidas e fracassados.
_Antes perder a fortuna que a honra!
_Antes perder a honra que o bom senso!

_Oi.

_Diga!
_Diga!
_Hoje riru di mim, cês podi me expricá?
_Por que alguém riria de uma moça tão bela?
_Mi perguntarum u que eu achava du socialismu i eu disse que não gostu de fala de religião… moçus, seis tão bem? PUR QUE ESSA ARMA???

O piano

Eu nunca soube tocar piano, já havia pensado, cogitado aquilo. Já me projetei em roupa adequada e postura elegante diante de uma exaltada plateia, que aplaudia sem cessar cada nota que eu executava, mas tocar? Jamais.
Próximo a casa do meu tio havia uma loja de artigos musicais, eu espiava quando por ali transitava: vários instrumentos, alguns eu não sabia o nome, sequer imaginava que eles existiam e sempre parafraseava “Pra que tanta tranqueira meu Deus?”
Com certeza que a vida ia me pregar uma peça, nesse dia tinha algo novo, reluzente, enorme, chamativo, gritando “ME TOQUE, ME TOQUE”.
Sim, era um piano.
O estranho aparece aí: fui surpreendido por uma vontade súbita e instantânea de tocar naquelas teclas furiosamente e repetidamente, até sangrar os dedos. O sangue deveria jorrar e se exibir de forma homérica, de preferência.
Isso não era vontade de criança de 10 anos.
Meu tio e pais também acharam isso.
Bom, sangrei meus dedos na porta branca do sanatório, ganhei o apelido de “menarca”, de quem? Do Oswaldo Cruz. Não fazia noção do quão sacana era o velho.
Após meses convivendo com personagens de todo tipo e época história – é sério, havia um deles que se auto-intitulava “Num-Jutsu-Bonaparte-Megazorde-De-La-Mancha” , se você perguntasse de onde ele veio, bom, só lembro da parte em que “se abriu um vórtex na televisão”.
Voltei para meus pais, voltei sem revolta; trabalhei, juntei dinheiro e descontei num piano só meu.

_Mas vovô, o senhor sabe tocar piano?
_De jeito nenhum!