Verde vontade.

Cenários bucólicos resumiam sua experiência visual. Funcionava lentamente, acordava e dormia muito cedo, sonhava pouco. Ir para a “cidade grande” era motivo de piada.

Por que diabos sair daqui? Aqui já tem tudo que eu preciso. Toda comida, bebida e sentimentos, sou auto-suficiente.

Assim foram 18 anos.

Prima da “cidade grande” veio visitar.

Perdeu os motivos e amassou as perguntas, foi com a amada para a hecatombe enfumaçada. Arranjou emprego, rotina e barriga. Estava feliz agora.

Sonhava muito. Todos os sonhos bucólicos. Onde poderia respirar plenamente, queria agora um sítio, já que seus ente-queridos já haviam se ido e ele havia vendido as antigas terras.

Experimentou uma semana no sítio de um dos colegas de cubículo laboral, só para avaliar como reagiria. Chegou sozinho lá, depois com a amada.

Como é quente aqui. Cadê a tomada? Nem geladeira essa espelunca tem. Como pode ter tanto mosquito, mosca, bolor? Aqui fede, é muito úmido, e se eu precisar dos meus remédios? Aquele rio é meio parado, não confio.

Voltou para casa sonhando com um Big Mac espirrando óleo velho.

Do topo.

Hoje, a torre de transmissão que deu problema foi aquela que fica bem no meio do maior bairro da cidade, a localização dela parece piada, eu sei. Pelo que me disseram (moro aqui há cerca de 5 anos) a grande antena foi instalada primeiro, as casas brotaram ao redor mais tarde.

A parte que eu mais detesto é, no caso desse tipo de conserto, ter que subir toda aquela escada, cansa e, cá entre nós, você parece um macaco desesperado por uma banana enquanto faz isso.

Lá do alto era mais interessante. Antes de executar meus serviços, eu me estendia para observar a população e tentar adivinhar o que cada alma estava pensando ou fazendo.

Como fui num barro popular, formigas não faltavam, sempre em enormes agrupamentos. Hoje eu levei um binóculo, assim, poderia analisar que tipo de formigas-humanos eram aqueles.

Um grupo apressado estava indo para a papelaria, são irmãos atrasados para o primeiro dia de aula, fevereiro é assim mesmo. Um par de pontos indo em velocidade razoável e em linha reta quase perfeita, hum, achei que fosse um casal de idosos praticando a caminhada recomendada pelo doutor, mas era um casal de mulheres. Essa modernidade. De longe, o conjunto de pingos que mais me chamou atenção foi uma sequência: retângulo se encontrando com um pixel, virou um borrão, corpos ao redor fagocitaram o conjunto. Deduzi. Era um acidente. E infelizmente eu acertei, nunca imaginei que através de um emprego mal pago (para quem tem diploma) eu veria de camarote, o atropelamento do Ricardão. Ri.

Impedimento.

Acordou de madrugada, praticar o único crime que tinha ciência: Assaltar a geladeira. Abre a porta, a luz fria e o cheiro de comida que restou assaltaram o garotinho de volta, ele gostava dessa onda de crimes recíprocos. Pegou leite, chocolate em pó e pedaços de pizza frios, preparou o leite e sentou no chão limpo da cozinha, costas apoiadas no armário de metal. Via reflexos dos pedaços se decompondo no piso. Comeu rápido, ofegou.

_Ahh, delícia.

Sua camiseta branca estava toda amassada, e agora ganhara de bônus uma mancha marrom de leite achocolatado. Desligou a luz da cozinha, lavou as mãos e deitou na cama novamente.

_Ping, ping.

A torneira havia ficado aberta.

Foi fechar, claro que não conseguiu, claro que estourou o cano, claro que os pais acordaram, claro que apanhou, claro que foi de mochila úmida pro colégio.

_Fez xixi na calça menino?

A professora super-simpática perguntava de tempos em tempos, ele não respondia, só queria voltar no tempo. Iria construir uma máquina.

Passou a tarde inteira pensando em como fazer uma máquina do tempo.

No seu quarto, o único esboço correspondia a isso:

1 – Bloco de números, quatro posições possíveis de se mudar.

2 – Jornal velho, para ligar o passado e o presente.

3 – Chiclete, para abastecer.

4 – Relógio para escolher as horas.

Fez a montagem com toda dedicação possível. E pronto, só faltava imaginar.

Sentou e pensou na data, girou os blocos e o relógio.

E comeu a pizza sem lavar as mãos.

Incesto.

No meio de um barranco, acomodada entre os mosquitos, tempo quente e úmido, esperava que algum peixe ouvisse suas preces e pegasse logo a isca. Estava a mais de cinco horas ali, parada, pensando.

Havia pensado em várias coisas, seis, pra ser exato.

Primeira coisa:

Tentando interpretar seus sonhos, ela chegou a vários questionamentos, mas  nenhuma resposta humanamente aceitável, ou mesmo com nexo suficiente para ser aceita como resposta de algo. Sonhar estar num carro que flutua e depois estar no meio do rio nadando como se tivesse guelras significava o que?  Tomara que seja sorte, ou mesmo amor vindo, o coração solitário dela não aguentava mais exibir essa condição. Seus pensamentos sobre sonhos acabaram levando ao pensamento solitário cardiovascular.

Segunda coisa:

Sabia porque tudo estava terminando na sua dor. Qualquer assunto acabava caindo ali, estava sozinha pescando devido a isso mesmo, aquelas férias no sítio do seu avô não deviam ter tomado esse rumo, seu tio não devia ter falecido, ainda mais daquele jeito, no meio de todo mundo, logo o tio que ela gostava – mais do que devia. Sua mente tentou reconstruir o cenário do velório, foi aí que ela ficou mergulhando nessa memória para tentar lembrar-se de algum detalhe que havia esquecido.

Terceira coisa:

Todos estavam de preto, ela também. Descabelada, ela chorava compulsivamente, a memória vinha acompanhada de uma visão encharcada de lágrimas e meio embaçada pela sua tontura, lembrou de uns abraços falsos de tias que ela nunca havia visto e umas risadas longínquas de primos crianças que ela já se habituara a ignorar. Não sabiam porque ela estava naquele estado, apenas a mãe dela possui noção do fato. Lembrou do ponto alto do velório, quando, num acesso descontrolado, pulou no caixão, desmoronou a estrutura e chorou em cima do tio. Arrastaram ela com força, ela perdeu o enterro. Era uma memória muito difícil de recordar, só piorava as coisas.

Quarta coisa:

Quando voltara a si, se percebeu chorando e com a varinha torta, quase quebrando, porém a vara era de bambu, e o peixe provavelmente não passava dos cinco quilos, ela puxou, e conseguiu no lugar do animal um pedaço de madeira. Madeira podre. Recolocou o anzol e a isca e começou a observar aquela madeira de modo detalhado. A pequena peça transitava tons de marrom acinzentado até algo parecido com café, não era feia, estava cheia de irregularidades e era bem leve, parecido com o jeito com que seu tio falava com as pessoas, aquela forma sorridente e leve, às vezes irônica.

Quinta coisa:

Lembrou do início das férias, sua mãe havia percebido que ela ficava com os olhos brilhando quando estava perto de seu irmão, no caso, tio da menina. O tio falava, o tio andava, o tio metabolizava, e a garota com olhos brilhando perto dele. Ela não era a sobrinha preferida da família, tampouco a neta xodó da vovó, por isso só a mãe notou o fato. A garota sentia muito bem quando era observada, sabia que sua mãe estava prevendo o que poderia acontecer, sabia também que a mãe não admitiria aquilo de jeito nenhum, tudo bem que ele era o irmão caçula, e que a diferença de idade entre eles era de menos de uma década, mas, era incesto do mesmo jeito! Ela entendia de como se colocar no lugar da sua mãe. Porém nunca imaginou que ela faria algo para implicar na morte do irmão, mesmo que acidental. Desde criança seu tio tomava remédios para controlar um aneurisma cerebral, eram essenciais, diários e necessários. Caríssimos, produtos de última tecnologia farmacêutica. O tio tomava fervorosamente, isso tornava a rotina dele muito mais limitada no que se tange a ações, sim, isso ele sabia, mas prolongava a vida ao menos. A mãe de férias com a família, não queria que as férias trouxessem de volta seu irmão defeituoso pra casa, ainda mais com sua filha! Trocou o remédio por um placebo, sabia que isso iria causar um mal-estar no tio, uma dor de cabeça rápida, o aneurisma poderia até ameaçar estourar, porém após uma ida no hospital, como já era o último dia de férias, seu irmão se recuperaria enquanto eles partiriam. Isso não aconteceu, o placebo que sua mãe escolhera possuía um componente alérgico grave para o tio, e esse agonizou e morreu no meio de todos, num jantar onde o prato era leitão a pururuca.

Sexta coisa:

Ela não tinha conseguido falar com sua mãe ainda, sabia que o falecimento do tio havia prolongado o período de férias ali, sabia que sua mãe havia se tornado mais introspectiva do que de costume. “Psicopata progenitora”, a única conclusão plausível foi essa. Ela havia sumido depois daquilo, só sobravam seu pai e ela, e os mosquitos.

A varinha puxou forte, rasgando a corrente de pensamentos e retornando ao mundo real. Era outra madeira, dessa vez maior. No mesmo “estilo” da anterior. Agora estava lá, orando para poder pegar um peixe para poder voltar para casa, sabe se lá porque ela estava fazendo isso, criando compromissos talvez. Antes que ela pudesse olhar pra trás depois de pegar um dourado e estar na trilha novamente, várias árvores desceram o rio, e em uma delas estava o corpo de uma psicopata.

Rotina.

Capotou da cama.

Agradeceu por ter uma, foi tonteando até a cozinha, fez o café e dormiu esperando a água ferver, o café correu a garganta e os olhos puderam se abrir. Banho. Carro, se tivesse um seria mais feliz, pensou.

Chacoalhava no ônibus.

Braços contra braços, odores, como alguém pode cheirar tão mal assim, esbarrou em uma bolsa rosa.

_Qual é a coisa que você mais gosta?

_Você.

_Não, sério.

_Você. E não há nada além.

Além da dor de cabeça. Uma semana após a declaração, ele pegou ela na cama com um cobrador (ou trocador) de ônibus, maldito. No chão estavam roupas, documentos e a bolsa rosa que ela ganhara dele, no primeiro mês.

A bolsa rosa.

No meio da chacoalhação ele sacou uma arma, matou o cobrador, ela e ele. O ônibus foi mais vermelho pro centro.

Vermelho intenso.

_Oi moço, gostou da minha bolsa?

_É linda filha, é linda.

E desceu do ônibus olhando fixamente para a bolsa daquela garotinha, engolindo sapos como lanche da manhã.

Epicismo

_Como se constrói uma frase épica?

Disse isso olhando no fundo da íris do seu tio. Ele era escritor, provavelmente já havia produzido muitas frases épicas.

_Não é difícil João, basta um pouco de vontade e clichê. Bom, a parte chata fica pelo encadeamento da frase.

_Tio, mas uma frase épica não é uma frase nova? Por que colocar mais clichê?

_Depende, muita gente não conhece o clichê.

_Tio, o encadeamento, como funciona?

_É aquela sensação de que está O.K., de plenitude sabe? Aquela sensação quando as coisas deram certo, entende?

_Sim Tio, só uma coisa.

_Diga sobrinho?

_Não quero mais uma frase épica.

_Por que? Pequeno gafanhoto.

_Frases épicas não saem do lugar.

_Tá aprendendo rápido.

Papo.

_Oi meu bem, eu comprei várias coisas no supermercado, ração pra cachorro, frutas, pães, bolacha, trouxe aquela bolacha que o Zequinha tanto gosta, trouxe também algumas barras de chocolate diet e várias caixas daquele suco sem conservantes, trouxe também alguns produtos de limpeza, sabão em pó barato, alvejante caro, bom bril, desinfetante melhor que aquele perfume que você usava, tem aquele produto para tirar manchas, peguei também um pacote de pasta de dente e sabonete cem por cento natural, adoro essas coisas ecológicas, eu reencontrei a Lurdinha lembra aquela nossa colega de ensino fundamental que serviu de cupido pra gente, ainda me vem a cabeça quando no meio da festa junina você me ofereceu um pacote de pipoca doce e eu recusei, você ofereceu quentão e eu bem, sabe da história né, aliás sabe que dia é hoje, faz vinte anos três meses e quatro semanas que você me deu a primeira balinha de cereja, de balinha em balinha você me levou ao altar e me entregou a aliança num papel de bala que eu quase comi, a nossa vida é tão linda não é amor, eu acho, tirando as brigas da mamãe com você mas o Zequinha aliás resolveu tudo né, sabe meu amor, eu te amo demais tá, meu celular onde está, você viu? Ai, beijos até, já volto.

_Beijo.