No meio de um barranco, acomodada entre os mosquitos, tempo quente e úmido, esperava que algum peixe ouvisse suas preces e pegasse logo a isca. Estava a mais de cinco horas ali, parada, pensando.
Havia pensado em várias coisas, seis, pra ser exato.
Primeira coisa:
Tentando interpretar seus sonhos, ela chegou a vários questionamentos, mas nenhuma resposta humanamente aceitável, ou mesmo com nexo suficiente para ser aceita como resposta de algo. Sonhar estar num carro que flutua e depois estar no meio do rio nadando como se tivesse guelras significava o que? Tomara que seja sorte, ou mesmo amor vindo, o coração solitário dela não aguentava mais exibir essa condição. Seus pensamentos sobre sonhos acabaram levando ao pensamento solitário cardiovascular.
Segunda coisa:
Sabia porque tudo estava terminando na sua dor. Qualquer assunto acabava caindo ali, estava sozinha pescando devido a isso mesmo, aquelas férias no sítio do seu avô não deviam ter tomado esse rumo, seu tio não devia ter falecido, ainda mais daquele jeito, no meio de todo mundo, logo o tio que ela gostava – mais do que devia. Sua mente tentou reconstruir o cenário do velório, foi aí que ela ficou mergulhando nessa memória para tentar lembrar-se de algum detalhe que havia esquecido.
Terceira coisa:
Todos estavam de preto, ela também. Descabelada, ela chorava compulsivamente, a memória vinha acompanhada de uma visão encharcada de lágrimas e meio embaçada pela sua tontura, lembrou de uns abraços falsos de tias que ela nunca havia visto e umas risadas longínquas de primos crianças que ela já se habituara a ignorar. Não sabiam porque ela estava naquele estado, apenas a mãe dela possui noção do fato. Lembrou do ponto alto do velório, quando, num acesso descontrolado, pulou no caixão, desmoronou a estrutura e chorou em cima do tio. Arrastaram ela com força, ela perdeu o enterro. Era uma memória muito difícil de recordar, só piorava as coisas.
Quarta coisa:
Quando voltara a si, se percebeu chorando e com a varinha torta, quase quebrando, porém a vara era de bambu, e o peixe provavelmente não passava dos cinco quilos, ela puxou, e conseguiu no lugar do animal um pedaço de madeira. Madeira podre. Recolocou o anzol e a isca e começou a observar aquela madeira de modo detalhado. A pequena peça transitava tons de marrom acinzentado até algo parecido com café, não era feia, estava cheia de irregularidades e era bem leve, parecido com o jeito com que seu tio falava com as pessoas, aquela forma sorridente e leve, às vezes irônica.
Quinta coisa:
Lembrou do início das férias, sua mãe havia percebido que ela ficava com os olhos brilhando quando estava perto de seu irmão, no caso, tio da menina. O tio falava, o tio andava, o tio metabolizava, e a garota com olhos brilhando perto dele. Ela não era a sobrinha preferida da família, tampouco a neta xodó da vovó, por isso só a mãe notou o fato. A garota sentia muito bem quando era observada, sabia que sua mãe estava prevendo o que poderia acontecer, sabia também que a mãe não admitiria aquilo de jeito nenhum, tudo bem que ele era o irmão caçula, e que a diferença de idade entre eles era de menos de uma década, mas, era incesto do mesmo jeito! Ela entendia de como se colocar no lugar da sua mãe. Porém nunca imaginou que ela faria algo para implicar na morte do irmão, mesmo que acidental. Desde criança seu tio tomava remédios para controlar um aneurisma cerebral, eram essenciais, diários e necessários. Caríssimos, produtos de última tecnologia farmacêutica. O tio tomava fervorosamente, isso tornava a rotina dele muito mais limitada no que se tange a ações, sim, isso ele sabia, mas prolongava a vida ao menos. A mãe de férias com a família, não queria que as férias trouxessem de volta seu irmão defeituoso pra casa, ainda mais com sua filha! Trocou o remédio por um placebo, sabia que isso iria causar um mal-estar no tio, uma dor de cabeça rápida, o aneurisma poderia até ameaçar estourar, porém após uma ida no hospital, como já era o último dia de férias, seu irmão se recuperaria enquanto eles partiriam. Isso não aconteceu, o placebo que sua mãe escolhera possuía um componente alérgico grave para o tio, e esse agonizou e morreu no meio de todos, num jantar onde o prato era leitão a pururuca.
Sexta coisa:
Ela não tinha conseguido falar com sua mãe ainda, sabia que o falecimento do tio havia prolongado o período de férias ali, sabia que sua mãe havia se tornado mais introspectiva do que de costume. “Psicopata progenitora”, a única conclusão plausível foi essa. Ela havia sumido depois daquilo, só sobravam seu pai e ela, e os mosquitos.
A varinha puxou forte, rasgando a corrente de pensamentos e retornando ao mundo real. Era outra madeira, dessa vez maior. No mesmo “estilo” da anterior. Agora estava lá, orando para poder pegar um peixe para poder voltar para casa, sabe se lá porque ela estava fazendo isso, criando compromissos talvez. Antes que ela pudesse olhar pra trás depois de pegar um dourado e estar na trilha novamente, várias árvores desceram o rio, e em uma delas estava o corpo de uma psicopata.