Propaganda do ato

E na sala da agência de publicidade do governo:
_Acho que assim tá bom. Sorrisos estampados, roupas limpas, tipos brasileiros. Vamos mandar para as emissoras e lançar o site promocional.
_Não tem nem um pouco de remorso? Em lançar tanta mentira, tanta utopia?
_Baixou a Madre Teresa, camarada? Escolheu a profissão correta? Você quer convencer que esses últimos quatro anos foram bons para todos ou não?
_Mas há como sem esse exagero.
_Qual é? – O jovem ajeitou os óculos quadrados e a camisa xadrez – Acordou depressivo, foi? Você sabe, que, no fundo, estamos colocando esse país para funcionar e dando material para os músicos e ensaístas frustrados que buscam uma paixão para explodir em arte!
_Hmm, continue seu raciocínio.
_As obras mais marcantes, as músicas que você provavelmente mais aprecia, seu quadro favorito, seu diretor, todos, em suma, só foram geniais porque refletiam o período de crise que vivam! O bem que estamos fazendo é sem precedentes! Se somos oprimidos pela realidade – que pode vir de violência desmedida até propaganda para lavagem cerebral – a tendência é que a história acelere-se e o mais nobre do homo sapiens seja revelado!
_Então você quer me convencer de que fazendo um vídeo que vai enganar os mais carentes estarei, enfim, fazendo um bem para – não só o país – a humanidade? Que o sofrimento é a única, digo, a melhor maneira de incentivar a genialidade?
_Exatamente. Estamos movendo o sistema, os artistas – os bons – reconhecem a nossa importância e temem o dia que alguns – os mais medíocres – sonham: O da paz mundial. A violência é o mais importante propulsor humano, fugir dela é inútil e desgastante, por isso eu não sinto o mínimo peso ao fazer o que faço e você não pode cair nesta armadilha.
_Quanta babaquice você acabou de dizer.
_Hein?
_O que eu aprendi e mantenho comigo é de que a violência só tem serventia ao criar associações negativas, que marcam? Claro, mas da pior maneira que existe, e antes que você me chame de alienado eu rebato dizendo que você agora pouco tentou alienar-me com um conceito no máximo infantil, de amador, e generalizar o que nós fazemos certamente não é o modo correto de me convencer a fazer a ridicularidade que será esta propaganda, não vou adiante no que eu penso porque já vejo sua expressão acusando-me de superficial ou soldadinho do governo, entretanto, já me faço o favor recíproco de ir embora. – Fechou seu notebook e deixou seu crachá na mesa em um simbólico gesto: “Vá se ferrar”.
A campanha foi um sucesso, acompanhada dela mais uma leva de quadros, livros e filmes emergiram, o que o primeiro previa aconteceu, mas não do jeito que ele remontou, até porque as obras lançadas acabaram criando mais pensadores pessimistas, no fim, a nação estava repleta de inertes conscientes, os que aprenderam tudo sem violência continuaram surgindo e aumentando, meio sufocados, contudo os tipos coexistiam na massa e no mundo.
As faculdades de publicidade fecharam depois dos prédios serem destruídos por um maluco incendiário que declarava-se “o messias das mentes”.

Mariposa

Depois do serviço feito, zíper fechado, batom repassado, o cliente levanta-se e ela o observa:
_Então, é só isso?
_O que você queria mais? Sua hora já foi, se quiser outra é mais trinta.
_Você não vai contar sua história de vida? Como você sofre todo dia, a sua família, esse tipo de coisa.
_Ah…

Ela disparou um riso irônico, levantou-se da cama e pegou a bolsa. Parou com o quadril na diagonal, acendeu o cigarro e disse enquanto o rosto mudava de expressão:
_Não há poesia no nosso trabalho. Isso é coisa de filme ou de um desses românticos que vêem beleza num saco de bosta.
_…
_Entendeu? Agora vá.
_…
_Ficou besta rapaz? Vai logo que eu ainda tenho o que fazer!

E o rapaz foi tropeçando nos próprios passos, mais curioso do que nunca para saber sobre a mariposa, até perceber que confundiu os fatos e que isso só serviria para dar um tom de conversa de pescador urbano na mesa do bar.

Urgência em doze vezes

A obra prima da semana era uma pirâmide de enxaguantes bucais; ao invés de amarelo a cor da promoção era o azul, um azul que conferia ao produto um ar mais antisséptico e menos natural; passou umas duas horas construindo o seu monumento, sua ode ao consumo, duas longas horas que o fizeram acordar mais cedo e rever as estrelas que ainda estavam no céu antes de ir para cama.
“Tudo por um extra no fim do mês”, pensava, ao mesmo tempo em que lembrava que só estava lá por causa de uma primeira pirâmide, de vidros lotados de azeitonas sem caroço, o cara que trabalhava com isso foi remanejado para o supermercado da zona leste e assim ele serviu como quebra-galho, adoraram o resultado e fizeram um trato: “A cada escultura, dois por cento a mais no salário.”
Não era muito, não era quase nada, era o que bastava para deixar o mês menos apertado, para afrouxar o cinto do sistema que tanto sufocava e, desta maneira, rir com uns dentes a mais.
Mas essas embalagens plásticas não ficavam em equilíbrio; não conseguia passar do segundo andar até perder todo o trabalho.
Era bonito quando tudo desabava, rapidamente o chão branco era coberto pelas garrafas desordenadas, balançando o líquido azulado; era questão de tudo virar um inferno caso uma tampa traísse sua função, então o chão azularia, o cheiro forte de menta invadiria e o salário diminuiria.
E essa composição não vingava e o tempo não queria saber, abrir as portas do estabelecimento agora iria assumir a incompetência do rapaz e toda antecipação de nada serviria; razão para chacota e dinheiro perdido.
“Vamos lá… você consegue…”
Analisou como alguns vínculos humanos pareciam-se com aquela analítica labuta; entes que exigem todo um cuidado para formar algo que não é compatível, que não encaixará, que não será, e você, com aquele esforço sobre (sob) humano pressiona a situação até o inevitável acontecer e o que era indiferente passa a tóxico e incômodo.
Forçar algo incompatível só gera desgaste.
“Se bem que…” e aquela vez em que a teimosia salvou o dia saltou a visão, talvez a insistência soldara as arestas, permitindo que o problema dissipasse-se até ser esquecido e cair num depósito de enganos. E a linha tênue entre o que deve ser feito e o que não deve ser feito tomava uma bruta nitidez.
A linha tênue da vida.
E um par de pernas acordou o pobre funcionário que dormia pensando com o queixo apoiado na gôndola de higiene bucal, não sabia o que era sonho ou não, porém o chacoalho de sua amiga de profissão fez enxergar os clientes chegando e a sua pirâmide pronta.
_Como você conseguiu? Ela piscava, atônita.
_Eu não faço ideia.
Construiu, a tempo, uma pirâmide inversa, de dez andares que ia cair em cima do primeiro garoto que esbarraria na obra ao pegar uma pasta de dente da moda, não deu nem ao menos para fotografar o feito.

Bala Natural

Subiu o pé de goiaba feito um macaco, ágil e preciso, para poder enxergar que gente era aquela acumulada no pé do outro morro, estavam com roupas coloridas, pareciam de marca, erguiam cartazes amarelos.
Apoiou-se num dos galhos para deitar-se em outro, um dos braços alcançou uma goiaba enorme, estava pronto para assistir o que ia acontecer com aquele pessoal estranho, todos eram brancos e com relógios brilhantes.
Estavam em frente a um posto policial, entoaram um grito em uníssomo “Segurança é garantia pras crianças.”, o que parecia ser o líder parou diante todos e começou um tipo de jogral:

“Elas são o futuro do país!
Devem ser tratadas com respeito!
Criança se cria feliz!
Com segurança, educação e direito!”

O posto estava vazio. Mas eles não paravam de berrar. Até perceberem que dali não sairia um mísero representante ou personalidade.
E a massa moveu-se.
O muleque saltou da goiabeira – quase escorregou – e foi correndo por cima, estava curioso para ver como é que terminaria aquela gente por ali.
Subiu num pé de manga quando os manifestantes pararam em frente a associação de moradores; agora eles de certo vão receber atenção, e começaram outro coral.
Até sair um sujeito acompanhado por uns vinte capangas, ele atirou para cima, foi o suficiente para que o grupo sumisse, só se via gente correndo, morrendo de medo de morrer.
O chefão ria sonoramente da situação até perceber que dois jovens – um casal – ficaram segurando papéis e o coração nas mãos.
O menino na mangueira mordia a metade da mão em sua ansiedade. “Vai ter presunto hoje?”
Não foi preciso mais que um subordinado para arrastar os coelhos para o matadouro, o garoto não queria perder – em hipótes alguma – o gran finale, desceu pulando o morro onde estava e atravessou os corredores entre casas para sentir o drama pulsar:
Amordaçados e ajoelhados, só o chefe na sala com os dois horrorizados, o menino enxergava pelo vidro quebrado da janela velha.
_Vocês sabiam, dos trato, das parada…
_A gente…
_A gente o caralho!
E o garoto arremessou uma pedra que acertou o traficante que estava distraído baleando o já morto rapaz, assim, a menina foi salva, ela que soluçou nesse dia ganhou vocação e alçou o sucesso profissional como palestrante, famosa em seu meio, não cogitava ter empregada em casa e fazia as compras na feira sozinha, havia um rapaz que vendia goiabas e mangas em péssimo estado, porém a dívida dela com ele ultrapassava o plano econômico.
_Olá moça! Vai goiaba aí?
_Sim.
E pulando as formalidades:
_Mas moça, eu nunca entendi o que aconteceu.
_Nossa ONG era contra a violência, porém comprava dos vendedores desta.
_Ainda não entendo.
_Não entenda.
E ela levou a sacola numa mão enquanto a mente pesava pro outro lado ao recordar do tipo de hipocrisia que aceitou e incentivou num passado nem tão longíquo.