Sonhos Lúcidos – 10

Do alto da torre era possível ver toda a cidade, principalmente de noite, o dia era muito claro, e como era a torre mais alta do mundo a visão se resumia em quase branco, mas de noite, ah, a noite, a noite era a vida humana fervendo em baixo da minha vista, os pontos se alternando entre ligado e desligado, enquanto eu podia ver a linha do nascer do sol de um lado enquanto o rosado do pôr abençoava o outro; a torre era invisível para maioria das pessoas, o que aumentava sua candura, na verdade era invisível de fato, a torre era eu e eu a torre, fixo, imóvel, apenas espectador do meu próprio desenvolvimento, ilhado dos problemas. Fui crescendo, achei que ia morrer asfixiado, mas não, o sonho era plácido e outro porto-seguro, estava tudo bem, mesmo eu não tendo controle de nada. Um sonho que precisava ser transmitido em outras mentes e neste sonho eu era um transmissor muito feliz da minha mensagem, era como se eu fosse o distribuidor de humor das cidades.
Dias chuvosos de mal humor e ensolarados sorridentes, poderia prosseguir esta rotina por um dia, uma vida, uma noite.
Acordei com uma nevasca.

Meu Fragmento, Seu Fragmento

O portão estava enferrujado, notei hoje ao chegar, o fato chocou-se com uma memória da peça de metal, uma longa memória. A conversa não seria muito amistosa, se eu fosse recebido com pedradas compreenderia por sinal, quem gostaria de ver um velho enrugado sem uma das orelhas em plena luz do dia?

Eu sabia que ele estava chegando, arrumei os móveis para o evento, arrumei na formação antiga, que sempre estive acostumada, a casa não era mais a mesma – e como seria depois de tudo que havia se passado? Porém era o que eu poderia oferecer, o que sinceramente era muito para ele.

Algumas décadas para a esquerda na linha do tempo, quando a rua local era trafegada por mais pessoas e animais do que automóveis, quando aquela casa era o modelo a ser copiado por metade da cidade, quando não ter filhos era uma ideia ousada e nova, uma ofensa para muitos; morava ali um casal, recém-casado, recém-conviventes.
O que se ouvia sobre eles? Comentários cheios de ódio e amor – o que no fim é praticamente a mesma coisa. Que eram o casal da televisão, dos filmes mais belos do país. E o cinema era coisa de gente moderna, ah, a modernidade.
Ambos possuíam um senso de individualidade bastante marcante, mas mesmo assim resolveram abrir a vida de maneira praticamente irreversível, tentaram experimentar o que dizem ser amor ou ilusão.

Ilusão.

Meus dedos estalaram no portão, inutilmente, vi que havia uma campainha tão destruída quanto o portão, toquei-a. O toque era um ruído levemente irritante, não uma nota doce ou convidativa, parecia uma descarga elétrica em forma de som. Um repelente.
Agora estalava minha coluna, a espera eu compensava brincando com meus estalos, era uma diversão gratuita afinal, faziam o tempo passar muito melhor que aqueles aparelhos eletrônicos em que os jovens vivem grudados.

É ele. Vou abrir o portão. Não, não vou. Como não? Era por ele que eu estava esperando e fiz tudo que fiz. Não seja infantil! Não tenho mais tempo na minha vida para perder assim, como semi-vontades e pensamentos tão levianos, meu tempo é curto, qualquer dia posso estar estendida no chão dessa varanda, sem vida. Vou abrir o portão agora.

O portão foi lentamente puxado.

Tiveram o mês do coelho, com pouca discussão e muita ação carnal, foi tão rápido quanto o bicho sugerido enfim. E veio a primeira etapa verdadeira, quando cada um começou a desenvolver os vícios, ela tornou-se uma mulher que ridicularizava quando jovem, uma limpadora compulsiva, e ele tornou-se a imagem que condenava no seu falecido pai: Um marido ausente, com milhares de amantes, que não era homem o suficiente para encarar a verdade e que vivia de fuga em fuga, de cama em cama, de emprego em emprego.
Da fase do vício, do escapismo, ou nasceria uma crise ou o fim derradeiro e violento surgiria. Veio o momento.
Antes de tal acontecer a língua da população e da imprensa marrom era a faca da vez, alguns diziam que ela estava enlouquecendo e largando a carreira, o que acusavam-no também, porém julgaram-no como um viciado e fraco, que seria fadado as migalhas e mendigagem.
A casa continuava linda, as pessoas continuavam a metabolizar.
E a noite do momento viria.
Veio.

Ela ainda era a mesma. Sim, o tempo havia esculpido sua habitual passagem em seu corpo, mas era quem eu comecei com uma das empreitadas mais infelizes, senão a mais, da minha vida. O pior foi perceber que eu estava paralisado diante sua presença, ela com certeza despejaria uma cascata de indignação, ou de balas, que venham, ou mereço pior. Só me pergunto o que eu vim mesmo fazer aqui, não estava tudo melhor só? No meu apartamento esquecido?

É ele mesmo. Eu não acredito, e não acredito no que eu consigo ainda sentir por esse objeto podre. E isso está me fazendo mal, é como se os meus sentimentos não tivessem um décimo de idade das minhas rugas, por favor, poupem-me disso, sou uma senhora de respeito, não preciso dar satisfação para um traste, alguém que só me fez sofrer e deveria ter morrido há anos. O que ele está fazendo aqui? Depois de tudo?

_Bêbado e fedendo prostíbulo de novo? Eu não mereço isso.
_Vai ficar preocupada com minha limpeza, de novo?
_Se você soubesse o real significado de preocupação já teria saído daqui!
_Teria saído é dese casamento!
_Ora, você acha que ele ainda existe?
_Se não existe por que você ainda finge tão bem diante das câmeras?
_Eu não finjo.
_Finge sim, bem demais até.
_Asqueroso!
_Ora, não me venha com esse tom de voz!
_Você tem que me respeitar! Não sou uma dessas inhas!
_Vou te ensinar o respeito real…

Ele iria tirar o cinto, agindo por reflexo ela correu até cozinha para pegar uma faca, ele tentou correr atrás da moça até ser atingido pela mesma.

_MINHA ORELHA!
_Vá embora daqui, AGORA!
_ESSA CASA É MINHA!

No meio tempo a vizinhança havia acumulado no portão, tal foi derrubado por pessoas que ao mesmo tempo iriam ajudar enquanto sorviam da desgraça alheia.

Ele foi preso, ela ficou sozinha.

_Eu vim buscar minha orelha. Como falei que um dia faria. Só quero minha orelha de volta.
_Aqui.

Estava guardada numa caixa de charutos, tão velha quanto o pedaço de cartilagem.

Lembraram da utilidade do dia.

Sentença Digitada

Este dedo é o fura-bolo.

Pensava alto enquanto soterrava o indicador em glacê fresco, lambia e sorvia todo o açúcar do bolo, a festa estava um tédio mesmo, será que há chocolate no meio do bolo? Sim! E estava no ponto perfeito, é o dedo mais divertido este, com certeza.

Este é o dedo indicador.

Já não havia mais bolos para perfurar, apenas pessoas e culpas, era uma arma, já fizera um amiguinho de colégio chorar com uma denúncia.

O dedo em riste.

Passado o tempo, era um dedo com terno agora, demitia pessoas e chamava garçons, era com este quirodáctilo que tampava a visão ideal, da vida que de fato deveria ter tido.

O dedo no botão, na tecla, na tela.

Da casa, do carro, da esposa, todos comandados, nenhum sentido ou interação além-plástica.

O dedo que tentaria puxar o gatilho; impedindo por um dedo minúsculo:

_Não faça isso, pai.

 

Poderia amputar sem sentir falta.

A Morna Hora

A película da noite foi sendo aspirada aos poucos, perdendo a cor, a intensidade do céu e o peso, o cinza dava lugar ao azul claro, ou seria branco? As estrelas iam sumindo até chegar o ponto do meio-termo: Noite-dia ou Dia-noite.

Acordava neste horário.

Algumas fagulhas laranjas cintilavam na massa urbana, os caixotes com seus quadrados trocavam o preto e branco pela coloração original dos edifícios, não que a maioria fugisse do cinza, pela contrário, contudo era necessário pontuar que as exceções cumpriam o papel com nobreza, sem eficiência.

Ainda havia lua no céu, e sol rasgando o horizonte também, era hora da aquarela dos tons quentes, cohabitar com tons da noite, e o céu era a tela, dos aviões barulhentos, pássaros raros, sacolas voando, lágrimas que se confundiam com a chuva que começava a completar o cenário.

As pernas corriam da água, ou para retirar coisas dela – a roupa, o trabalho, o computador, poucos corriam em sua busca – as crianças que acordavam sem se importar com escola ou não.

Atormentada tal hora, as profissões noturnas cruzavam-se com as diárias, hora de dormir para certas formas de existência, hora de acordar para co-habitações. Risos, declarações, atropelamentos, nascimentos, números.

Assim seguia com a impressão de que hoje tal panorama havia congelado-se nos olhares e conclusões de outros e, enfim

Acabou.