Fixação

Ia batendo o prego na madeira, era uma tábua velha, mas ainda estava em bom estado, bem profunda, talvez um prego daquele tamanho fosse pequeno demais, a última ripa para finalizar a obra.

” Atenção não foi o necessário, você sempre quis mais e mais, percebi que eu não atendia a você, o que por tabela não atendia a mim(..)”

Batia mais forte, na mesma velocidade, remoendo as letras, descontando as palavras na cabeça da peça metálica.

“É covardia deixar uma carta, sim, e você não entenderá o meu lado, não. Só pense que se precisei assim fazer, não foi sem motivo(…)”

Agora estava muito mais rápido, não percebeu que o prego já estava fixado, quem passasse vendo o momento poderia ficar espantado, acima de tudo riria com o pino sem fim.

“Não há mais o que dizer, suas amantes devem falar melhor por mim do que o meu único, e não foi vingança, eu o amava, como um dia pensei que te consideraria(…)”

O saco de pregos estava esvaziando-se, a ripa de madeira velha era vítima de sérias rachaduras, a maioria irreparável; os objetos acabaram e o martelo escapou, rebateu na casinha de velas do lado da lápide.

E tudo que me sobrou dela foi uma carta maldita.

“Assinado

aquela que está condenada.”

A Página

Era uma noite de final de reality show, algo completamente irrelevante para uma parcela da população, não fosse o fato de ser um evento mundial e o prêmio ser um país.
Um país inteiro.
As regras eram bastante simples, bastava conviver e sair aos poucos, o público escolhia o mais carismático e assim iam saindo, um por um, até sobrar os cinco finalistas.
Quatro homens e uma menina de dezessete anos, todos sabiam que ela se consagraria vencedora.
Era a oportunidade perfeita.
O clímax da televisão mundial seria atingido em 10 minutos, todos os participantes estavam acomodados em poltronas, esperando o resultado, espremendo-se em ansiedade com muitas línguas acompanhando do lado de fora.
A garota teve um rompante.
Saiu correndo, gritando, até a cozinha, os quatro rapazes a seguiram, tentando ajudar em vão, era histeria? O primeiro a ajudar teve o pescoço rasgado com a faca usada pra fazer o churrasco do almoço, o segundo com o susto caiu para trás, batendo a cabeça na quina da bancada de forma violenta e fatal, o terceiro foi para cima da menina, tentando imobilizá-la, sem sucesso, seu coração foi perfurado em um único golpe. O quarto arrancou a faca da mão da menina e incrivelmente cravou em si mesmo, enquanto ela restou sozinha.
A transmissão cessou depois disso.
As notícias que explodiram só diziam que a jovem havia sumido.

_E por que ele faria isso?
_Chamar atenção?
_Isso não é típico dele…
_Talvez queira passar um recado!
_Para quem?
_Talvez não seja ele, pode ser outro caso, não é porque foi aparentemente inexplicável que tem que ser ele!
_Não seja idiota, claro que foi O suspeito!
_Ele virou justificativa para tudo que aparece de inusitado agora? Estamos sofrendo uma crise de preguiça intelectual por aqui, pode assumir esse caso sozinho, eu vou embora.
_Não.

A arma apontada dizia por si só – a confidencialidade daquele caso só poderia ser desmantelada com o fim, ou dele, ou dos agentes.

_Pois bem, voltando a tese, por que ele faria isso?
_Ele com certeza deve imaginar que o investigam, talvez seja um jogo para mostrar quem tem mais poder.
_Entendo, pensando assim, creio que ele espere que nós contra-ataquemos, não, ele quer falar conosco, quer encontrar-nos.
_Ele quer uma emboscada. Pra acabar com o jogo.
_E como podemos confirmar isso?
_Temos que esperar, se for de fato o que estamos pensando ele fará uma pressão cada vez maior, não irá poupar ninguém.
_NÃO PODEMOS ESPERAR ENQUANTO VIDAS SÃO SACRIFICADAS INUTILMENTE!
_Mas não estaríamos entrando no jogo dele?
_Não temos opção. O jogo pode ser dele, mas a jogada ainda é nossa, é questão de reverter.

A pressão no ambiente era crescente, o ar parecia uma coletânea de lâminas, respirar ardia.

_Então, quando e como faremos? Sei que acima de tudo devemos ser rápidos, cada segundo…
_Calma. As emoções não podem fluir desta maneira.
_Que se dane, eu montaria uma armadilha para ele aqui mesmo no QG.
_Quem garante que ele virá em pessoa?
_É simples. Convoquemos indigentes sem nome.
_Como assim?
_Precisamos de todas as pessoas com as maiores desgraças de vida que conhecemos, pessoas que não existam em cartório.
_Eles servirão de escudo humano?
_Não, apenas faça.
_O que você está pensando?

E em tal situação os agentes já não eram mais um pensamento organizado, o time separou-se em quem era a favor da ideia ousada e quem era contra.
No fim todos concordaram. Parecia absurdo, mas a situação necessitava de pensamentos absurdos.
O anúncio foi público, secreto seria apenas o que aconteceria lá dentro, toda forma de imprensa fora avisada.

Os indigentes experimentaram alguns dias de vida nova, alguns não aguentaram a nova realidade, tão acostumados com a escória existencial, preferiram voltar, a maioria sabia que corria risco de morte, estar ali nunca seria de graça, porém estavam lá, esperando algo ou alguém.

16h e 32min.

Cai o primeiro indigente.
E como dominós todos vão desabando.
A ordem, a ordem das mortes escreveu algo, uma mensagem:

“QUERO QUE VOCÊS APAREÇAM NO TOPO DO CRISTO REDENTOR, LÁ ESTAREI”

A causa mortis dos indivíduos era clara e denunciava O suspeito: Parada cardiorrespiratória.

_Ele tem sérias tendências megalomaníacas. Não matava inocentes, apenas criminosos cruéis, depois a curva cresceu para todos os tipos de crime, agora qualquer um.
_E assim descobriremos quem ele é.
_E se for uma emboscada?
_Eu vou sozinho.
A equipe negou com veemência.

_Sou eu quem ele quer. A briga é comigo.
?
_Somos irmãos, tenho certeza que é ele.

O sol brilhava de uma maneira fúnebre. Se é que isso pode acontecer. E lá estava a silhueta, no polegar da estátua gigante.

Não havia ninguém, somente um pedaço de papel colado no concreto, escrituras.

 

“Querido irmão.

Esconder-se com tal pseudônimo, “L”, que ideia mais infantil de sua parte. Tudo bem, matar as pseudo-celebridades daquele programa não foi uma postura muito madura de minha parte, existem maneiras mais inteligentes de chamar atenção, o ato poderia parecer inexplicado.
Não foi.
Você deve ter suspeitado do acordo que eu fiz com os donos da emissora, em verdade, deve até mesmo saber que eu sou o assassino, o grande KIRA.
Digo mais, deve ter descoberto até nosso parentesco, nosso óbvio parentesco. Pensei em comparar-nos com Caim e Abel, mas não há lado bom ou mau por aqui.
Pois bem, os indigentes eu matei com meus olhos de Shinigami, mesmo que eles não fossem registrados, a alma deles denunciava um nome maior, um nome antigo, algo que só os deuses da morte dominariam e a tal artifício você não teve acesso.
Peço desculpas a quem entrou no meu caminho, porque no fim eu só queria dizer uma coisa:

GANHEI!

Ah, já ia me esquecendo:

– L Lawliet
Depois de ler esta página, irá amassar o papel e pular da estátua em um ato suicida.”

E na mente do investigador algumas poucas palavra ainda giravam conscientemente, mesmo sabendo que entraria no torpor proporcionado pelo caderno em alguns instantes:

“Não, irmão.
O derrotado foi você.
Nunca precise de Death Note para ganhar, sempre fui o melhor – e tal verdade ficará encravada em seu âmago eternamente, uma vez que minha vitória será eternizada com minha morte. Seu plano de captura está ocorrendo no QG e a ordem de execução para todos os suspeitos será realizada sem o menor problema.
EU GANHEI!”

O corpo despencando da estátua confirmou a ordem do pedaço de papel.
E a execução de Light também aconteceu, Light que morreu com vários tiros, remoendo a derrota definitiva.

“MALDITAS EMOÇÕES!”

Inspiração: Death Note (Do mangá originalmente escrito por Tsugumi Ōba e ilustrado por Takeshi Obata).

Passo e Volta

Pulou mais um bloco de amarelinha.

Céu.

Imaginava o azul e a falta de fim.

Pulava de volta, um, dois, três.

Inferno.

Sentia um calor apertando.

Voltava para o meio.

Sentiu-se melhor ali.

 

_EI, VENHA JANTAR!

 

Uma hora ia ter que sair dali, sem poder escolher.

Senhas e Pastas

Encontrou um desses celulares novos num banco de ônibus, ficou surpreso como alguém poderia esquecer um item daqueles, tão cobiçado nos dias de sempre.
Resolveu fuçar.
Não havia código, tudo bem, se é capaz de perder um celular com certeza não pensava em usar código de segurança, previsível isso.
Vamos checar as mensagens.
Vazio.
De certo era alguém que usava só para chamadas.
Vamos ver o registro de chamadas.
Números aleatórios, a pessoa não guardava nomes, só números; que estranho.
Não deve ter nenhuma foto ou música pois então.

Pulou do ônibus na parada, quase passou distraído com o objeto perdido, pensou em entregar para o trocador, mas provavelmente ele acabaria no bolso de alguém mesmo, levo pra onde?
Vou anunciar na internet.

Escreveu um belo texto sobre o contexto da situação, inclusive detalhando o tempo local:

“Num dia frio entrei num ônibus da linha Y e achei um celular X no banco Z”

Pensaram que era piada, mas escreveu assim mesmo, pra ver se atraía alguém dos círculos próximos.

Uma mensagem dois dias depois:

“PAGO BEM DEVOLVE O MEU CELULAR RUELA QUINTA”

Por que uma ruela?
Não tem problema, a vida tá tediosa mesmo.
E no beco um susto, um desmaio e um bilhete.
Um envelope, um cheque no valor de 1 real.

“Se você tiver as fotos contigo, pode aumentar os zeros – veja o espaço – e eu saberei da transferência, permitirei-a, mas só se provar que tem as fotos.”

Que fotos?
As que não existiam?
Não, as que ele não viu.
E se o cara for um criminoso?

_E foi isso, deixei o cheque por lá.
_Vai ver era melhor assim, meu bem.
_Nunca saberemos.
_É.

E depois de ouvir a história do seu parceiro, ela vestiu sua roupa de dormir, deitou de leve na cama onde ele já desmaiara alguns minutos atrás. Antes de programar o alarme e desligar o celular juntou as mãos para o céu “Obrigado, Senhor”, apagando todas as fotos e a ideia de que a sua vida andava tediosa, pensou consigo mesma o porque das pessoas acharem isso, coisa que seu esposo nunca deve ter achado, sempre tão reto e matemático.

Gadificação

Dos sensos coletivos que são necessários para sobreviver em dias atuais penso que um dos mais expressivos – e difícil de engolir – é o de gado. Isso mesmo, da numerização, de perceber que por mais que você tenha poderes ou influência, você nunca irá estar cem por cento responsável pelas suas ações e caminhos, é quase como o retorno a condição uterina, porém de maneira muito mais incômoda e traumática. Como numa fila de banco, ou em qualquer tipo de fila, aeroportos, hospitais, lanchonetes, aí a condição de gado é a mais marcante. Há quem se relute a entender ou aceitar, fazem protestos inúteis contra motivos que nem mesmo lembram, como se algo fosse mudar lá ou aqui. Nessas horas as palavras ecoam:

 

GADIFIQUE-SE
É TUDO PELA SEGURANÇA
E EFICIÊNCIA
CAFÉZINHO SENHOR?

 

Não, obrigado. Uma alternativa viável é se atentar a desgraça alheia para amenizar a própria. Isso, minha vida poderia estar assim, acolá e tudo mais. Só não esqueça da sua senha e entrar na fila com seu amor, até porque você é mais um que quer pegar a estrada ou ser útil.