Começou a contar os passos como se o mundo fosse acabar amanhã. Um, dois, três, quatro mil e nove…
Na caminhada numerada sentiu passar a loteria, o emprego, os sabores, os amores e os cabelos, contudo, não poderia parar. Contar era mais importante, teria seu registro histórico para quem viesse depois.
Quem sabe eles precisem de números, pensou que anotaria tudo no fim do exercício apocalíptico portanto. Em meio aos saques, estupros, atentados violentos ao pudor e esfacelamento do estado, o rapaz prosseguia alheio a batucada, e ia enumerando passos até tropeçar numa irregularidade na calçada. Um velho chorando, com a mão enrugada estendida, suplicava:
_Minha filha, minha filha…
Pulou o obstáculo.
Maldição! Teria que contar tudo novamente!
E refez o caminho. Enquanto voltava encarou o céu vermelho, os asteroides sinuosos, os focos de incêndio na cidade, os gritos de tristeza e as ambulâncias ininterruptas.
Ficou com um aperto enorme dentro de si, ignorou o sentimento e tornou a andar, um, dois, três, quatro mil e nove…
Parou na ponta de uma cratera, aberta por uma bomba, vários corpos faziam o morro da vala comum improvisada. Começou a contá-los, quantos deles sorriam, o último riso.
Escreveu seus números em um papel higiênico que seria usado por outro ser no momento derradeiro de sua existência: o fim.