Contagem Séria

Começou a contar os passos como se o mundo fosse acabar amanhã. Um, dois, três, quatro mil e nove…
Na caminhada numerada sentiu passar a loteria, o emprego, os sabores, os amores e os cabelos, contudo, não poderia parar. Contar era mais importante, teria seu registro histórico para quem viesse depois.
Quem sabe eles precisem de números, pensou que anotaria tudo no fim do exercício apocalíptico portanto. Em meio aos saques, estupros, atentados violentos ao pudor e esfacelamento do estado, o rapaz prosseguia alheio a batucada, e ia enumerando passos até tropeçar numa irregularidade na calçada. Um velho chorando, com a mão enrugada estendida, suplicava:
_Minha filha, minha filha…

Pulou o obstáculo.

Maldição! Teria que contar tudo novamente!
E refez o caminho. Enquanto voltava encarou o céu vermelho, os asteroides sinuosos, os focos de incêndio na cidade, os gritos de tristeza e as ambulâncias ininterruptas.
Ficou com um aperto enorme dentro de si, ignorou o sentimento e tornou a andar, um, dois, três, quatro mil e nove…
Parou na ponta de uma cratera, aberta por uma bomba, vários corpos faziam o morro da vala comum improvisada. Começou a contá-los, quantos deles sorriam, o último riso.
Escreveu seus números em um papel higiênico que seria usado por outro ser no momento derradeiro de sua existência: o fim.

Sono

O sono ladrão da vitalidade, que infiltra-se em capilares, antes vibrantes agora ocos, sem sangue, sem ar, sonolência apenas, que preenche todo sistema circulatório e pesa nos globos oculares, as pálpebras magnetizadas em sua função de impedir e bloquear o primitivo processamento cerebral humano de imagens, de feixes de luz em diferentes velocidades emitidos por fótons que não vacilavam.
Sono. Fixara-se a simbiose do descanso, dormir era o verbo mais almejado nas estatísticas tortas de expressões descendentes que não suportavam mais outra coisa e espaço senão o confim dos sonhos, em que o sono sumia depois de seu abraço terno e asfixiante.
Um sono guardado numa caixa, esperando ser transportado e distribuído aos ventos, como areia branca, areia do sono, em que a estabilidade não passava de uma brincadeira de mau gosto, inventada por quem nunca desfrutara do prazer monstruoso de uma boa noite do mais profundo, pesado e imobilizante.
Meu sono, inteligentemente burrificador e terrorificante. É o que eu tenho precisado durante toda a vida de cão de cidade cinza. A linha ocular, a boca mole o ar suave ou trepidante expulsado das narinas quentes. Roncos leves e outros barulhos orgânicos constroem a noite para os que a desprezam, os que anunciam e renegam a tranquilidade noturna.
Frio, calor, sono e realização.

Baralho

A Terra se contorcia, dobrava, redobrava e elevava-se naquela sucessão de pequenas colinas; a maioria coberta com o tapete verde da agricultura, algumas manchas marrons de solo em preparação e a beleza das curvas de nível vistas de longe, o rio, uma lâmina azulada do alto e uma imensidão solitária embaixo trazia mais vida, porém não mais ação.
Quilômetros depois do curso d’água havia um restaurante velho cheio de gente nova – mochileiros, sim senhor – a maioria seguia o padrão: Homem com estatura média entre 23 a 27 anos, conversavam sobre mulheres e ratos.
No estacionamento cheio de pisos hexagonais que já foram perfeitamente encaixados, mas agora não seguiam mais nenhuma lógica organizacional, estava um par de pernas e seis rodas. O motorista tomava café sem imaginar quanta história guardava cada pedra elevada…
Houve um casal que terminou o noivado lá mesmo. Outro que começou, um fulano que recebeu uma ligação informando que seu filho estava em estado terminal, todos por coincidência ou não, deslocavam um bloco no ápice emotivo.
Justamente por isso, depois do restaurante fechar e a cidade florescer por ali, foi criado o primeiro ponto turístico local, carregado de superstição e papéis enrolados depositados nas frestas sagradas. Escreva, dobre e desenhe um hexágono. “A calçada hexagonal dos desejos” fez a cidade entupir-se de misticismo e esoterismo, no futuro criariam um mega parque de diversões temático, a principal atração era uma roda gigante em que os visitantes embarcavam em cartas gigantes de tarô.
E a terra se contorcia menos.

50 anos

E divorciada. Trocada por uma ninfeta com mais mililitros de peito do que de encéfalo. Do tipo de vadia que para parecer mais sofisticada ofende de acéfalo quando quis dizer anencéfalo e nem sabia.
Que se dane.

Saiu com o carro que comprou com o próprio dinheiro de mulher bem-sucedida e bem-traída. Pegou a via rápida que estava vazia e sentiu o vento no rosto, o carinho natural, mais aconchegante do que qualquer idiota de meia-idade.
_Múmia!
_Aborto do capeta!
_Cão!
Os xingamentos romperam sua meditação eólica-automobilística.
Malditas lembranças.
Os fantasmas escolares não escolhiam momento, digo, selecionavam sim, tinham preferência pelos instantes de prazer.
Eram um puxão sem anestesia pós-queda.
Na angústia da menopausa misturou remédios, cigarros, álcool, fantasmas e repulsa.
Agitou tudo e bebeu numa só golada.
Demorou – 5 meses – mas desceu, e o corpo filtrou. Senhor do Bom Rim e Pai do Fígado Eterno, amém.
Arranjou um rapaz e casou-se. O jovem também a traía, entretanto ela sabia. Tudo para ver o canalha 1 ferver de cíumes em festas sociais onde serviam hipocrisia em copos de cristal.

Distorção

“Hoje aprendi na aula que o sal dos olhos é o sal do chão; as mães choram e o mundo não para por isso, o que é muito cruel. Então tive uma ideia que vou apresentar semana que vem, vou apresentar o projeto de uma nova folha, que, a princípio só vai circular na escola, mas se der certo eu busco patrocínio coisa e tal.
‘O Alienista’, esse vai ser o nome, não achei melhor referência e maior sinceridade: Uma publicação que só traria boas notícias – mesmo que inventadas – serviria como refúgio para os depressivos, como alvo para satirizadores (que só existem a partir da existência prima da arte alheia), como ginástica facial para os sisudos e de – quem sabe – motivação para ações transformadoras.
Ações positivas e pacíficas.
Na verdade, ele seria um ótimo veículo para publicidade! As pessoas costumam pensar em consumismo quando estão numa operação tapa-buracos da alma ou quando estão felizes, os anúncios de hoje querem escancarar a felicidade – mesmo que o mundo esteja em colapso – e adoram “o bem”.
‘O Alienista’ será um sucesso! Pensando mais longe, posso dizer que ele salvará o planeta, não é óbvio? Mesmo que oculta, a realidade transmutará para o que está escrito. O feeling provocado vai ser avassalador! Por isso hoje foi um marco na minha vida, o pensamento de milhões de mentes e dólares, não consigo parar de sorrir ao pensar na concretização! O sal do chão nunca mais será sinônimo de chacina! Vocês têm que querer!”

Crítica 2

_Querem que eu escreva sobre elementos que eu não convivo, não conheço. Não vejo lógica nessa requisição.
_É porque depois de certo tempo, você se torna repetitivo.
_A medida que eu vivo vou acrescentando mais ao meu ficheiro de cenas interessantes. Isso evita o tédio. Mesmo assim, insistem em dizer para eu produzir sobre o que não entendo, isso só pode dar errado.
_Está.
_Então eu vou continuar redigido sobre temas dentro da minha ótica.
_Ok.

“Os pés balançavam dentro da bacia, fazia dias que não limpas seus pisadores com água quente e sabão neutro. Como se a limpeza dos passos condicionasse e desencadeasse a limpeza da alma.”

_Veja, eu poderia escrever sobre meus pés sendo higienizados e ainda parecer copiador?
_Não, entretanto isso é chato.
_Chato?
_É.
_Eu não tenho pé chato!
_É o que você escreve.

“Jogou a cabeça para trás e observou a cidade invertida, guardou a imagem para lembrar mais tarde. Sentiu a circulação travando.”

_E agora?
_Confuso, nada original.
_Pois então vou copiar um gesto de outro conto.

“E o autor levantou e deu um soco no nariz do crítico, que foi embora respirando de lado.”

Olhares

Seus olhos não portavam mais o brilho da juventude, aquele brilho vívido, que motiva e irradia energia por onde mira, aquele tipo de olhar que encontramos em jovens na guerra, em discursos sinceros e vozes acima do pensamento; o brilho sumira, trocara de lugar com uma profundidade ocular, um tipo de olhar de complicada forma de decifrar, que expressava uma gama enorme de opiniões, emoções, experiências e conselhos, uma profundidade de quem já viu os fatos se repetirem e de quem sabia que tudo não pararia se o seu mundo parasse.

Tais olhares, o jovem e o desgastado encaravam-se agora, de maneira que o conflito já estava pronto, o olhar velho possuía um bocado da cegueira do já vivido, enquanto o mais novo transbordava emoções prejudiciais a qualquer discussão.
O mais novo até tentou abrir a boca para emitir aquela senhora expressão de efeito que escolhera a dedo, mas o idoso usou sua mão cansada para afagar a cabeça do rapaz:

_Eu entendo perfeitamente, agora vá para seu quarto.