Tenho Noção Da Minha Mediocridade

_Primeiro fato: Mediocridade é relativo a médio e não a inferior. Para alguns, reconhecer-se na massa, ou encaixar-se nela é o mesmo que o inferno. Talvez sejam esses tempos em que querem implantar na sua cabeça que você pode ter valor individual.
_Todo indivíduo tem seu valor unitário a partir do momento em que este encontra-se em conjunto.
_Segundo: Portanto temos um exemplo de ascensão traiçoeira. Enquanto um sujeito sente-se bem estando “sozinho” e vai subindo a pirâmide social “por conta própria” vai criando-se uma ilusão, uma projeção, de que o hedonismo individual faz sentido.
_Todo indivíduo tem seu valor unitário a partir do momento em que este encontra-se em conjunto.

Dobrou o papel, selou a carta e guardou numa gaveta, pôs no recipiente uma correspondência-lembrete do tipo que recomendaria para rasgar ou ser rasgado.
Para conduzir a vida.

Fugere Urbem De Fim De Semana

As luzes alaranjadas da iluminação pública destruíam qualquer clima poético que cogitasse se manifestar, as avenidas recheadas de positivismo não permitiam que os sentimentos aparecessem além das tonalidades básicas, ou era tudo triste, ou tudo feliz, novamente por aquela localidade o que se via de coisa humana, de treco pulsante, de negócio com vida, eram os vetores.
Encapsulados nas armaduras de aço, todos sedados e esperando tudo já passar pela vida o que é que fiz, contas a pagar, filho tossindo, barriga crescendo, a hora do chope, um motivo para convencer, outro para não ser feito de tolo, mais um com aquela felicidade que lutava para parecer autêntica e mais um sorriso que esperava promoção no veículo ao lado e mais outra alegria de boteco ali, é, ali mesmo.
_Com licença, licença, licença…
Os ônibus eram o capítulo de destaque, capitular os meios de transporte que enfatizavam o ensardinhamento dos povos é necessário, porém todos estamos cansados, quem sabe a novela tá boa, dessa vez eu ganho na mega, eu não caio mais nessa de só falar, acho justo que a pena de morte seja adotada, esse negócio de esmola mensal eu não quero, você viu a fulana que morreu? Aquela que engordou e fez lipo? E aquele rapaz da rua? Acho que ele é maconheiro! Olhem vocês, é natural, não precisa ficar com essa caretice, não é coisa do demônio, essa é a era do fim do respeito, meu filho, preciso alimentar o meu, meu cérebro tá doendo, calor hoje né?
E o fluxo urbano travou de vez.
Isso mesmo, mais um acidente.
Interessante era relacionar uma sinistra (no sentido aterrorizante da palavra) constante matemática nesses incidentes: Quanto mais deformados os corpos ficassem, mais curiosos, sedentos pela morbidez, acumulavam-se, era fácil de ver como cada um vivia seu momento antropofágico, comendo pedaços do vitimado com os olhos, a selvageria das lentes em histeria, fotos e mais registros do defunto.
O tempo assumia a não-forma nesses rituais contemporâneos, talvez correspondesse a apropriação de cada ponto, a visão de cada gente ali, do cadinho do cadinho, o passado transmutava-se em presente e a metafísica descondensada das coisas não conseguia concluir o óbvio, o que estava esfregado.
_Tenho cinquenta gigas de fotos e vídeos dos acidentes que já aconteceram. É pé, cabeça, tronco, tórax, tudo rasgado e dilacerado.
_Você tem estômago forte, hein. Mas você não enjoa?
_Do quê?
_De tanta morte. Como é que isso não te deixa pra baixo?
_O sangue no asfalto sempre me impressiona. A súbita morte também. E não pense que eu não sofro com isso. Tenho gravações das mortes de dois irmãos, três amigos e um cachorro.
_Você faz isso por quê?
_Acho que só o fim, talvez nem ele daqui há um tempo, pode nos levar à reflexão, ou a sair da inércia.
_E pra quem? Pra que?
_Tudo isso é meu.

Não se alterou.
Um cão novo, um filho velho, uma nova pessoa, um produto usado, uma sensação requentada.
_E aquela fulana, você viu?