Para Agradar Lava-Pés

Um arrepio acompanhou o exército que emergia de toda parte do solo. Formigas; das que criam bolhas e coceiras por um dia, ou uma semana. A reação de terror ocorria pela associação com um episódio de tempos nem tão remotos.
Foi em dezembro retrasado, estava só, almoçou metade da comida e resolveu checar e-mails, estava aguardando a resposta sobre uma vaga – o salário ideal, na empresa ideal -, leu, escreveu, acabou pulando para alguma notícia bombástica, um vídeo engraçado que esboçou impaciência e um download daquela banda velha que era sucesso entre gente nova.
Duas horas.
Meio estômago pedindo meia refeição, foi ao resgate.
Seu prato fora tomado por formigas de brilhante marrom-avermelhado.
A imagem registrada em sua mente veio acompanhada de um fortíssimo fluxo de pensamentos sobre a condição humana, os valores e a valorização, o desprezo, o supérfluo, a superficialidade, a fragilidade, enfim, a humanidade.
Pensar trouxe mais fome.
Matou os insetos e lavou a louça.
Desde então, tinha crises esporádicas de arrepios e devaneios quando notava o acúmulo destes animais destiladores de ácido fórmico, o que fazia com que no presente ocorresse o estopim do maior pânico já presenciado por aqueles joelhos desgastados.
Um pé na terra fofa de um formigueiro revelou saúvas famintas, que atacaram as pernas daquele indivíduo, cada mandíbula cravada era uma exclamação mental, a carne urgente implorava por fuga e alívio, os olhos não, estes acompanhavam o viajante na conclusão do sentido da existência.
Veio o rompimento quando o corpo sucumbiu e o manto entomológico pesou.
Quase morreu para superar o trauma.
Saiu palestrando pelo Brasil e revelou-se guru das donas de casa.

Óculos, Lentes E Armações

Há um tipo de beleza que aprendemos a apreciar, não é a orgânica, como a sexual – por exemplo, tampouco padrões de harmonia corporal – esta é nos enviada conforme a vida e a genética. É a perfeição abstrata. Do gênero não exigido ou da lógica não necessária, pode ser encontrada em um galho apodrecendo ou em nuvens dispersas.
Advém de uma perspectiva íntima.
É aquela noção que pode ser transmitida, não por retórica e/ou dialética, mas por sinais, olhares, gestos, emoções, nuances, extravagâncias ou niilismo. Não se deve confundir com o barulho do contexto nem com pseudo-misticismo de algum cimento paraguaio para alma, é o que é.
Como o rápido pensador pôde deduzir, é relativa, o que pode causar discordância.
A síntese alternativa é pelo desentendimento.
_Isso não é bonito! É deformado, quebrado, sem sabor! Qual o título desse “coiso” que está aí?
_”O Mundo”
_Jogue isso fora. Isso é síndrome de genialidade de um olho só, é fantasia na sua limitação, mas não toca.
_Eu também o chamo de “Não”. Falo assim porque é humano.
_Jogue no lixo. Você vai morrer no anonimato.
_Outro nome bom é “Fúria Alheia”
_Pare de sugerir nomes para esse copy-paste que você fez. É pelo seu bem.
_Mas meu nome preferido é “Não”, já expliquei o porquê?
_Tentei avisar.
E a obra pintada com óleo de pequi virou ícone da disparidade. Assim como a matéria-prima, não permitia meio termo. Ou era genial, ou era bestial, nem a internet (?) chegara ao consenso.

O Gerador De Epifanias

O inventor brilhante conseguiu concretizar abstratices sentimentais. Descobriu a fórmula para sintetizar em tamanho plausível para ser sentido em tato alguma das maiores dúvidas da humanidade, porém nenhum o agradou, jogou no fogo o amor e a felicidades, todas pareciam irrelevantes perto de uma que dava tanto trabalho.
A reação de síntese material era tão complexa quanto a própria síntese ideológica desta coisinha complicada, minúscula e tão libertadora, tão inalcançável antes de seu aparecimento. O cientista estava enfim tentando fabricar epifanias.
Perdeu alguns anos de uma vida perdida e doada para fast-foods e fast-smiles na construção, todavia ela aconteceu, o patrocínio era de autoria própria e, pronto, entregue ao mundo.

“O Gerador De Epifanias”

Não foi patenteado, o criadorzinho morreu no anonimato e a empresa que “criou” o conceito estava no topo do mundo humano, era uma corporação do bem, emergia pessoas de estados e mudava a vida de todos a todos os segundos, as trocas de emprego, família, roupas e até de sexo alcançaram níveis surpreendentes. Nunca se viu tanta gente empenhada em atender as explosões mentais, a início era o sonho da filosofia, pessoas pensantes em todos os lados, o sonhado momento de apogeu intelectual estava entregue nas mãos da geração que brotava nesses anos, nesses currais.
O pós-surpresa trouxe a realidade que alguns profetizavam em si mesmo, aqueles que testam hipóteses como sabores de pizza sabiam que era o início do fim, a curva da humanidade foi descendendo em velocidade impressionante, digno dos tempos que correspondiam o gerador de epifanias, e o caos estava lá, nada queria ser tudo em que queria ser o nada sem ao menos decidir o que por um segundo seria a paz. Dos conservadores que só pesquisavam alguns resultados de trabalhos assustaram: Epifanias liberavam a maior dose de neurotransmissores já vista, o vício mortal.
E após a década da abertura da caixa de Pandora só restavam os idosos que resistiram a tentação de uma máquina tão estranha, assim, a civilização decaiu e essa foi a história de apocalipse mais próxima de você.

Jogo Cômodo

_Vou começar definindo como seria se cada uma delas fosse uma sala, então você complementa.
_Caso eu não saiba quem é quem, como continuo?
_Apenas prossiga, eu as revelo posteriormente.
_A primeira tem espaço amplo e paredes brancas, chão e teto idênticos, vidro fino e quebradiço, uma pressão mal aplicada e fim
_Essa é fácil. Anotei aqui. Próxima.
_A segunda é curiosa, são várias salas interligadas por portas que vão ficando mais grossas, o espaço vai diminuindo até alcançar uma pequena e apertada. Tudo recoberto por veludo branco e luz esverdeada.
_Complicou. Pule à terceira.
_A terceira. Um desastre. Repleta de crateras e espinhos gigantes, parece que foi acolhedora em um passado rosado, mas hoje e até a terra cobrir será assim.
_São de idades diferentes?
_Não a ponto de gerar discrepância nos compartimentos.
_Entendo. Há mais?
_A última. Posso afirmar que é a minha preferida. Muda conforme você observa, já tentei registrar mais do que três estados, mas é o máximo que alcanço. Alterna entre um paralelepípedo simples, com falsas paredes; um entrelaço suave de mantos e lençóis que formava nuvens; e outra que era formada por blocos acinzentados que trocavam de posição, revelando uma suposta mudança para que, então, tudo voltasse ao normal.
_Caramba. Esta vai por eliminatória.
_Pois bem, dar-lhe-ei um tempo para organizar os dados.

_Aqui. Prefiro entregar escrito a esbarrar na dicção.
“Primeira sala: Gracinha. É fácil adivinhar, pois se percebe que é usada uma metáfora para representar uma personalidade simples, exata, mas quebradiça. Sabemos que ela viveu algumas horas de trauma esses dias, trauma que a fragilizou.
Segunda sala: Deposito minhas fichas em Carmen, a mais experiente garota com quem tive oportunidade de dialogar, como qualquer humano crescido ela guarda suas reais posições abaixo de muitas camadas; contudo é notável que a moça porte alma doce e hipnótica.
Quarta sala: Vou chutar de primeira, acho que é a Janaína. Não sei responder o motivo, usei de intuição e pontaria, ela é a que aparenta mais bipolaridade na rodinha.
Terceira sala: Quis deixar por último, pois é a que eu tenho mais certeza. É a Luna, até permito-me a ousadia de chamá-la por apelido por conhecê-la tão bem. Quatro anos de namoro fazem isso, é bom deixar claro que não fui o principal culpado da catástrofe que a alma dela assumiu. Talvez um sangramento.”
_Acertou 50%
_Sério? Achei que trocaria todas.
_Você confundiu a segunda com a terceira.
_Como?
_Acha mesmo que eu não levaria em consideração seu envolvimento com Luna? E mais: Carmem é apenas impulsiva. Mais nada.
_E como você afirma com tanta veemência?
_Primeiramente, o criador deste jogo é este que vos fala agora, segundo, pois são as duas que eu melhor conheço. Envolvi-me com estas.
_Quando? Não vá dizer que fui traído por um amigo.
_Calma! Eu estive com a Carmen enquanto você Lunava por aí. Com sua ex só fiz algo após o fim do seu empenho.
_Empenho?
_Isto. Ela usava-me como cascata de reclamações, descobri que você nunca tivera acesso a Luciana de verdade. Mesmo em quatro anos.
_E a Carmen?
_Ah, digamos que ela tenha conhecido minha faceta chauvinista.
_E como você tem a garantia de que compôs as salas sem um borrão nas conclusões?
_Oh well, eu mandei as cartas, quem deveria prever este tipo de situação era você. Agora me entregue os cinquenta reais.
_Mas eu não sabia que você havia se envolvido com as duas!
_Sabia sim. Olhe para si, foi isso que faltou.
E as ideias fizeram sentido.
E uma onça foi de uma mão para outra.

Guardada

_Este é um dos bairros mais tradicionais da cidade, possui residências de época colonial, a maioria é mantida pelos próprios moradores; uns pagam para manutenção, outros vivem nas casinhas.
O guia turístico atraía a atenção da maioria dos estrangeiros, que tiravam fotos mais rapidamente que o ritmo dos pulmões, dos dedos.
A criançada não gostava dos gringos, de vez em quando jogavam alguma fruta podre na cabeça dos que passavam por culpa da distração de mães e tias.
Outro mito que assombrava o bairro era o da única casa sem vida. Sem habitante nem cuidado.
_E dizem que o último a viver aqui morreu pouco depois da esposa, mas antes de padecer guardou seu tesouro no fundo do poço da casa. Mais uma história boba, não acham?
Os turistas emendaram risadinhas nervosas.
O ônibus descia a rua na direção oeste, rasgando e costurando o fim de tarde.
_É hoje então? Tudo pronto?
_Não sei, acho que preferiria ir para o cemitério do que para lá.
Filhos de visitantes. Saíram do hotel no meio da noite tremendo sem tremer. Iriam ver o que havia dentro do poço.
Talvez o fato de ser Lua cheia deixasse tudo mais assustador, eu prefiro afirmar que estava mais visível.
Assim, ao descerem do micro-ônibus no referido conjunto de velhas quadras e chão cheio de pedras, meia missão havia sido cumprida. Agora viria o clímax.
Mesmo com o advento das tecnologias insones, o povo dali dormia e recolhia-se cedo. A violência urbana parecia respeitar aquela região, atacando preferencialmente centro e novos condomínios.
Tudo quieto.
_É aquela ali no fim da rua?
_Isso.
_Mas ela não tem poste iluminando. E a única maneira de entrar seria pulando o muro! É escuro e perigoso!
_O próximo coletivo só passa daqui à uma hora.
_Tudo bem, vamos.
Os jovens foram com passos preocupados, subiram o muro usando os buracos e fissuras como apoio temporário. Um estampido, mais um.
O primeiro a se levantar contemplou do lado direito um mato alto e assimétrico, “devia ser um corredor”, do lado esquerdo a casa tetrificada, a luz lunar incidia deixando um pouco mais amedrontador.
_O poço deve estar no fundo. Vamos.
_Vai.
_Nem a pau que eu vou sozinho. Vem logo.
_Tá.
Dividiram-se. Enquanto um nadava em meio à vegetação urbano-selvagem o outro vasculhava as ruínas da construção em busca de pistas para o tal tesouro lendário.
_AHH!
_QUE FOI?!
_UM BICHO!
E o mato virou um vendaval de barulhos até eles arrastarem o inimigo para uma área visível e pensarem no que faz com… Isso.
_UM ESQUELETO!
_Calma, é morto. Já foi.
_ISSO É DE GENTE!
_Claro que não, isso é de quadrúpede.
_E ESSA CORRENTE AÍ?
_Pare de gritar. Pode acordar alguém. Isso devia ser do dono original, de certo era animal de estimação. Tá vendo as quatro pernas desenvolvidas? Devia ser um daqueles filas-brasileiros gigantes, tem bastante por aqui.
_Desde quando você virou detetive?
_Desde que eu ganhei livros sobre o Sherlock.
_Eu não falava sério.
_Vamos procurar esse poço logo.
A divisa entre casa e matagal havia acabado, agora era mais verde pelos cantos até uma elevação de terreno em que ficava o poço iluminado pela noite.
_Trouxe um estilete? Vamos precisar.
_Verdade! Eu devia ter usado antes. Não acha melhor atear fogo?
_Tá maluco? Além de chamar atenção, a chance de a gente virar churrasco é enorme.
_É.
Perceberam que o mais adequado era poupar energia para o que viria. E corta mato, pisa leve, verifica frente, abre caminho; insetos e anfíbios brotavam, mas nada grave.
_Chegamos. É hora de pegar o souvenir perfeito.
_Não faria isso se você fosse eu.
_Por que você disse isso?
_Eu não disse nada. Não foi você?
_Hein? Eu não caio nessa, eu ouvi o que você acabou de falar sim senhor.
Nesse instante toda a vegetação entrou em combustão instantânea.
_Rápido! Pule para o poço!
_E se não houver água? E se?
_Vai logo!
_AHH!
A queda foi brusca, caíram em um chão lamacento, úmido, macio. O problema é que com barro até os joelhos os dois provavelmente perderiam os calçados.
O poço, sua entrada, dava início a um corredor de pedra, bastante claustrofóbico. Seguiram e arrebentaram a porta de madeira revestida por uma camada de cortiça.
O medroso usou um isqueiro para iluminara a sala. O tesouro estava lá: Todas as fotos, roupas, agendas e joias da falecida. Inclusive seu corpo jazia empalhado e envernizado no centro de uma espécie de altar, como uma eterna expressão horrorizada.
Um amigo encostou no ombro do outro afirmando:
_Pergunta pro espírito se a gente pode fotografar e botar no Instagram!

Fluxo 29

Penso que uma das melhores opções para um ser humano progredir, para dizer que cresceu e que é dono de si é através da quebra de segurança, você cresce e percebe que perante o mundo você é nada, uma peça, mesmo que represente algo, sua efemeridade é garantida, sua ausência pode até gerar algum estrago emocional em alguém, que pode partir pela sua partida, mas sua morte nunca será culminante no destino dos átomos, que continuarão circulando por aí, sem precisar temer a noção da humanidade, a condição de ter uma mente que questiona o nada, o vazio. Da noção de que nossos pais não são tudo isso que nos pareciam, ou que o mundo é bem pior do que parecia, ou que você não vai mudar nada nesse mesmo planeta, não você apenas, aliás, o fantasma da solidão é o companheiro mais constante conforme acontece a desconstrução dos mitos que você mesmo aceitou, embutidos em você por algo tão recente, tão frágil, que pode desencadear abismos simultâneos; retire os produtos e o consumo, retire as ideologias, tente justificar a unidade, não há.
Entra a questão da famigerada busca pela felicidade, se de fato quem se afirma feliz já parou para refletir sobre essa condição. É legítima? Certeza? Não. Essas incertezas podem ser corrigidas com muita disciplina e boa vontade, ou má vontade, como se aquela garantia de uma vida melhor com mais dinheiro não existisse, como se a carne por si só encontrasse diversão no ferimento alheio, ou no contato desesperado para encontrar algo que não está, que não exista. A progressão definitivamente é truculenta, alguns não passam por ela, já nascem desgraçados em seus pequenos destinos e representações na vida de pouco, papel desse texto não é avaliar se isso é melhor ou pior, a perspectiva de não possuir perspectiva. E a observação daqueles que ficaram para trás, dos que mudaram ou deixaram ser engrenagens de uma futilidade anti-sistema ou ainda de uma futilidade pró-sistema, como se a opinião o definisse, ou pior, uma empresa que se julga time e não carrega nenhuma ideologia ou motivo sincero de utilidade representasse alguma forma desesperada de busca por originalidade, sabe, o individualismo choca com muitos fatores que o mesmo prega a não-satisfação com a satisfação do momento.
Seguir em frente é para fortes, talvez por isso existam adultos reais e não-adultos gente que suporta de maneira doentia ou robótica e gente que finge que não, não tem nada mal, está tudo bem aqui no meu produto, na solidão.
Penso que uma das piores opções para um ser humano é não existir para si mesmo.

Dos Opostos

Malas marrons de couro falso formavam uma fila decrescente em altura, estavam perto de mãos que pareciam engatilhadas, prontas para o ato derradeiro.

_Então é isso.
_Talvez.
_Como talvez? Você provoca todas essas reações em nós para, no final, dizer que era uma brincadeira?
_Então quer que seja verdade?
_Não. Diga que está brincando.
_Você tem que aprender a se valorizar.
_Oh, por favor, já tivemos essa conversa dezenas de vezes.
_Lembra da última?
_Claro que sim, foi num banco de praça. Imagine só! Em pleno meio-dia. Você todo sério e eu, rindo.
_Vê? Atribuindo tanto valor a ridicularidades você comete suicídio emocional.
_E você gosta.
_Mas é claro.
_Qual era o motivo da sua partida mesmo?
_Como assim? Agora quem brinca é você, querida, quantas vezes não jogou na minha cara, segundo eu rosto, mas enfim.
_Enfim?
_…
_Solte essas coisas!

Jogou a bagagem com zíper aberto pelo táxi em movimento, tudo naturalmente abriu e saiu exposto, voando, roupas, fotos, aparelhos, notas e um lenço usado no primeiro encontro, um lenço que era um registro de dois planetas orbitando em si, um +, outro – e um 0 no centro.

Camadas De Débito

Conta de água, telefone, celular, internet, Tv à cabo, empregada, doação, banco, cartão de crédito-dinheiro-extra-sufocado-usa-aqui-corta-lá, farmácia, clube, escola, serviços adultos (Na época do meu avô seria pelos serviços de minha possível avó, hoje paga-se por um agrupamento de pixels para ficar alegre), tanta dívida e a conta de luz.
Alguém. Dai-me luz.
Esfolar minha coluna rezando em posição fervorosa não limpará meu nome pau-de-galinheiro. Preciso de um trampo melhor, de menos calmantes, de mais excitantes, de mais fumaça pura.
Fumaça pura. É o mais próximo dos meus pulmões.
Um cigarro aplaca a ansiedade e chuta um tossido arranhado, uma tosse de cachorro.
Cuspo cinza.
Ideia.
Desço escadas, olho para Lua, olho para lá, para luz, para o copo, para o canto.
Barulhos urbanos de madrugada e um ar gelado de julho fazem com que o sono venha junto com a conta.
Mais uma.
_Aceita alma?
O infeliz garçom perdeu forma, as linhas entrando em dissolução. Era a energia elétrica em meia-fase.
Outra beleza era ver como a preguiça assumia forma com a primeira justificativa.
_Você fica.
Mais uma pendência.
Mais uma fuga.
Essa vida sem resolução era o inferno. Criado por mim, não havia alma para ser vendida afinal.

Acendendo As Luzes

A Lua estava completamente cheia naquela noite, tudo era visível em campo aberto, emanava uma energia espetacular, formava mosaicos entre sombras e penumbras, principalmente naquele dia em que um blecaute calara o ruído eletrônico das residências. Blecautes eram eventos festivos para alguns otimistas, e pernilongos intermináveis para outros pessimistas. A seqüência de eventos que sucedia este maior quase sempre era de roteiro definido:

– GRITOS
Variavam de exclamações alegres à pânico emergido.
-PORTÕES
Abriam ou fechavam, levando gente curiosa para fora e gente amedrontada para as casas.
-LIGAÇÕES
Celulares substituíam lanternas, dezenas de revoltados reclamando para a companhia de energia.
-RODAS
Em bairros tranqüilos elas só cresciam, a luz iluminava dentes que sorriam por uma conversa esquecida.
-DESESPERO
Em bairros violentos, comerciantes tremiam e moradores sacavam as armas que tinham.
Em tempos de calor atemporal, grande parte dos humanos era forçada a sair de casa para sujeitar-se a humilhação nefasta de respirar ar fresco e sentir uma brisa noturna.

E a Lua coroando seu esforço em reconhecerem o presente que havia lhes dado em troca de liberdade.