Dos Goles

Primeiro gole: Vejo as pessoas passarem pela rua como se nada fossem, é um dia comum, sobrancelhas retas e narizes apontando para o chão, humor resmungante e garganta rasgando mediocremente, eu sei que deveria estar no fluxo deles, é o que os saudáveis fazem, é isso o certo, não? O motivo que me trouxe aqui nada tem a ver com vocês, com esse céu amanhecendo, com esse bar que nunca fecha, com esses dentes que não vão cair, não vou ceder, não é minha culpa.

Segundo gole: Outro arranhão, agora posso sentir a inebriação, as fagulhas de água que vão enchendo meus pensamentos, como se lavassem tudo, um grande e vibrante botão “não se preocupe”, mas se fosse algo tão simples assim eu não estaria aqui, não procuraria um desses bancos de madeira podre, que ainda assim vão durar mais que eu, com certeza irão, não, eu não vou ceder.

Terceiro gole: Contemplo o teto, vejo rachaduras, elas começam a se destacar no meu campo de visão, do sorriso obliterado do único funcionário ao ver minhas investidas de observação, ele sabe que eu vou pedir mais algumas doses até me chutar de lá e poder descansar mais cedo, um peso morto, é, como aquela moça que passou sorrindo agora, os sorrisos pipocam mais que as rachaduras do chão, do céu, dos sapatos e dos carros, há algo de muito podre em tudo isso, nessa cidade.

Quarto gole: …
Eu respiro, e não penso, não preciso pensar, sinto como se eu estivesse virando um vetor, uma linha, como se estivesse apagando, e não iriam notar, o que é bom, eu só quero ser esquecido, me esquecer, começar de novo.

Quinto gole: Consegui uma dor de cabeça, os trocados estão acabando. As horas, o sol agora queima minhas pupilas, brota suor em minha testa, pego o lenço velho, o lenço, amaldiçoado lenço, ele remete a origem, ao que eu estava tentando apagar. Foi tudo um acidente, mais vetores, mais ferragens, um barulho. Pingos vermelhos, uma explosão. MAIS UMA DOSE!

Oitavo gole: SABE O QUE É MEU AMIGO? Eu sei, sempre sabemos depois da terceira dose que saberemos sobre algo sabido. Pois então, foi aquela dia em que eu estava voltando de viagem, eu precisava correr, precisava ganhar tempo, precisava enganar o espaço, eu tinha certeza de que tudo estaria sob controle, tudo estava. E um animal infeliz cruzou a estrada, e tudo virou borrões.
Décimo gole: Isso, soluce bastante, seus trocados acabaram, agora é por minha conta. Eu sei, não é todo mundo que atropela um bicho, atinge outro carro e mata uma família inteira, eu pago esse último copo, um último gole para ti, não vou te impedir do seu destino.

Décimo primeiro gole: Durmo.

Um balde na minha cara. Eu também tenho a minha, é minha mulher:
_Vamos, você perdeu esse benefício da própria vontade faz tempo, venha cuidar de quem é mais importante que você.
_Eu, eu vou ser preso.
_Não importa, só venha pra casa.

A Lua

Nota do autor: Tudo bem, apesar de fugir desse tipo de produção eu acabei cedendo aos impulsos, e agora criei esta categoria de inspirações em obras conhecidas da mídia. Livros, filmes, jogos e demais obras serão fonte para um conto, no fim eu cito a inspiração original, dando os devidos créditos.

O céu era pesado, com um vermelho-acizentado fixo, como se estivesse aspirando o ar. Apesar do belo panorama dos longíquos campos dali eu sabia que o cenário tendia a piorar, que tudo poderia ir pelos ares em pouquíssimo tempo, mas ali a paz parecia reinar, mesmo que os mares estivessem sujos, a água ainda fluía bem, não me fazia lembrar das pessoas hipócritas – ou seriam desesperadas? – daquela cidade.

Será que fugir do destino, ignorar o óbvio, era a sina deles? Ou eu estava enlouquecendo e imaginando o apocalipse?.

Como quando no início, como quando nunca imaginei parar nessa terra sem esperanças, como quando enganaram-me e perdi minha montaria, meu instrumento e minha forma; melhor início impossível para esta terra, um prenúncio de quão soturna seria minha estadia. E como de praxe eu sabia, que tudo estava sob minha responsabilidade, e isso nunca representaria que seria mais fácil. Pelo contrário.

Era uma terra cheia de pessoas egocêntricas e práticas, nunca precisei sequer abrir a boca, ou porque na maioria das vezes não me ouviam, ou porque minhas emoções já falavam por mim. Como quando daquela vez em que fui só um espectador do pai desfigurado que eu pude trazer de volta.

Na verdade, egocentrismo foi o que me trouxe aqui. “Por que seus amigos são seus amigos?”. O menino que internalizou o mundo e ignorou a realidade foi uma ferramenta para o maldito demônio. Desses que circulam por aí e temos que exterminar todos os dias de nossas vidas. E por causa de um gesto me vi nessa terra de gente triste e cheia de degradação moral. Aquele desfiladeiro, a música dos baixos, as esculturas, a montanha congelada dos emotivos seres de pedra, o pântano das leis tortas, este mar. Tudo que vejo por aqui é um reflexo de nosso mundo. Com o epicentro nesta cidade.

A lua, a lua é somente um gatilho, Termina é toda a Terra em si, a diferença é que eu não existo fora daqui, tenho certeza de que esta terra errônea, de que os quatro guardiões, tudo sou eu afinal, eu sou o Skull Kid, talvez tenha perdido minha parte da Triforce, ou talvez ela seja um pretexto também.

Sei que esse cenário de agora, essa lua calma e com a árvore mais linda de toda a existência no meio é muito melhor que o mar, e eu posso ser só mais uma criança, brincando de simplicidade e sem escapismos.

Quem são seus amigos de fato? Quero dizer, eles também se consideram seus amigos?

Inspiração: The Legend Of Zelda: Majora’s Mask – (Nintendo)

O Talvez Das Coisas

Estavam de mãos juntas, as mãos – que a princípio simbolizavam união – para quem via de longe eram só um prólogo da divisão. As cabeças estavam em universos diferentes, não opostos, a oposição seria uma forma de semelhança afinal, não, eram voláteis, olhavam para outros corpos, fisicamente tudo estava bem coordenado, passando por postes, avenidas e pessoas sem desfazer o laço, contudo este era existente só nesse plano, o físico. E seria assim até chegar em casa, até as roupas irem para o chão e as mãos e os braços e a respiração, mas não estavam lá, ainda pensavam no vazio de estar em dois, na incrível redução do ar, redução de espaço da cama, do teto.

_E é tão difícil conseguir alguém nos dias de hoje, não?
_É, tem gente que joga fora toda a oportunidade que aparece de ser feliz.
_Verdade, as pessoas precisam valorizar mais o que a vida dá de presente.
_Com certeza, o ser humano tem que evoluir pessoalmente.
_Também acho, a sociedade não pode deixar isso vigorar como um todo.
_E a humanidade?
_O que tem ela?

O segundo derradeiro.
Tudo seria mudado agora, o grande rompimento, o melhor para ambos.

_A humanidade foi sempre igual.

E precisa romper?

_Também acho.

Mais mãos e cabelos, mais pensamentos alheios, e mais perguntas sobre qual é o verdadeiro manual da satisfação para dias em dois.

Concreto Derretido

Comprei um cachorro para dar de presente, tenho certeza que assim ele aprende a cuidar das coisas, ou não, talvez o bicho vá crescer fedorento, cheio de carrapatos, e ele fique mais irresponsável, mas o animal servirá de companhia secundária, ou mesmo de membro da família segundo a imaginação do moleque. Água voando em pingos de um pelo chacoalhado, saliva sujando o tapete e muita desordem, por que eu comprei um cachorro? Devia ter comprado uma criança, uma irmãzinha, deve ter alguma em uma vitrine urbana, uma menininha esperando ansiosa para existir, uma mãe tremendo de nervosismo ao receber meio trocado, para usar parte para espancar o fígado; são duas porradas, uma para aliviar, outra para acordar para a desgraça; a segunda é injeção na testa, a terceira é optativa, a pancada visual, aquela de não-ver outros dias de não ver além da cortina cinza que cada um por aqui aguenta com os ombros, tortos de tanto sustentar. Ela vai chamar-se Mariela, o nome da minha bisavó ficcional, é, nunca tive bisa, nunca tive mãe ou pai, nunca precisei, mas ele tem pai, e mesmo assim não dá um pingo, um carrapato ou meio trocado por isso, e eu comprando criança para agradá-lo. Para agradar quem mesmo? Vou é deixar Mariela naquele orfanato ali, ele noutro e vou viajar, vou para minha terra, nem que eu invente, nem que eu precise usar meu papelão-cama como casa, casa sem chão, sem casa, mas é minha…