Proselitismo de Transporte Coletivo

_Olá, meu nome é Jurandir, tenho 30 anos, 5 filhos, tuberculose, catarata e sou surdo-mudo. Estou aqui pois sou vítima do capitalista sistema que nos oprime, não consigo tratamento para minha saúde, sanidade, cifrões e…
_Sem-vergonhice, como pode surdo-mudo falar?
_Fui engenheiro mecânico e eletricista, desenvolvi um dispositivo que filtra e possibilita minha audição e induz minha língua, boca, e cordas vocais para certos movimentos específicos. Quer ver? (Aponta o dedo para o ouvido, uma borracha preta está lá).
_Tá bom, e como você não ficou rico com isso?
_Roubaram a minha patente e além do mais, não conseguiram reproduzir o mecanismo de forma adequada e o que você vê hoje é uma versão raquítica do meu invento por aí, por isso sou vítima do, cof, cof, sistema.
_HAHAHA! E isso foi sua tuberculose atacando de certo?
_É, espero que sua imunidade esteja boa.
_Está ótima, inclusive estou imune ao vírus da cara-de-pau!
_Mas moça, aliás, pessoal, vocês podem me ajudar? É tudo verdade o que eu digo! Cof, cof.

E o ônibus em coro: NÃO!

Manchetes no jornal do dia seguinte:

INCRÍVEL! PASSAGEIROS SOFREM CONTAMINAÇÃO EM MASSA!

ESTUPENDO! ENCONTRADO MORTO PAI DE FAMÍLIA HUMILDE QUE ESCONDIA SEGREDO TECNOLÓGICO REVOLUCIONÁRIO, VEJA O SEGREDO AQUI!

Respiração Ofegante

_A beira da morte eu prometi que ficaria com você, sim.
_Pois é, e você quer me largar agora Gino?
_Ok, primeiro reconsideremos e lembremos de um fato.
_Qual?
_Quando eu e você concordamos que eu estava morrendo?
_…
_Eu não ouvi o que você disse.
_Tudo bem que foi só um ataque de asma e agora seu suprimento de remédios e bombinhas é quase infinito, mas você prometeu!
_E desde quando eu estava são para fazer, ou melhor, te fazer promessas?
_Mas eu salvei sua vida!
_Não me venha com chantagem emocional, Isabel.
_É verdade Gino, o que você fez comigo não foi nada chantagista, né.
_Você gostou.
_Sim.
_E foi isso que provocou o meu ataque, se você não tivesse me animado tanto eu não teria jogado tudo pelos ares, nem esqueceria da minha limitação pulmonar!
_Não seja cínico! Você queria o tempo todo, “ou isso ou é o fim”, não esperou completarmos nem um mês!
_Isabel, você não tem noção de quanto tempo é um mês.
_Tenho sim, enquanto eu corri em busca da sua bombinha de ar o tempo pareceu não passar, eu lembrei de tudo que vivemos, como seria minha vida sem você, todos chavões vieram na minha cabeça e nada de bomba, até eu achar, você respirar e prometer!
_É, foi bonito, até porque, no final, não aconteceu nada.

Olhares, o casal se atraca.

_Gino, não esquece de deixar por perto!

Divã participativo

Pressionava o botão, novamente, novamente, novamente, novamente, novamente, novamente.
Nenhum canal prestava.
Girava o sintonizador, acima, acima, abaixo, abaixo.
Nenhuma estação de rádio agradava.
Eu estava ficando sufocado, em busca de fuga da repetição, de uma boa sensação que não fosse induzida artificialmente de forma física ou ideal. Era aquela alquimia da felicidade que dá certo quando você não busca, sabe Doutor?
Nem aqui você deveria estar, você sofre do mal social, isso, aliás, tudo, não tem solução.
Claro que tem Doutor, como quando você encontra aquela balinha de doce de banana ou um trecho de música que remeta a um fato bom.
Pois eu duvido disso meu caro, não entendo porque as pessoas ainda insistem em viver.
Doutor, que conversa é essa? O senhor deve ter algum motivo para sorrir, vamos lá, eu mesmo, adorava acertar onde estava o chaveiro sem procurar, ou mesmo uma boa corrida para encher os sentidos.
A situação é diferente do que você considera.
Cansei de apanhar da vida, dos outros.
Abotoar e desabotoar, viver consiste em repetir.
Não Doutor, existem muitas possibilidades, repetição é coisa de gente acomodada, coisa de gente que não quer enxergar de propósito Doutor.

_Daí o paciente foi embora, entendeu a moral?
_Sei, o paciente se curou, o cara fez de propósito. É, né?
_Não. Foi isso?

O mito omitido

Há uma história que contam para as crianças levadas, gerações mantém os parágrafos intactos, sabe se lá como, ela é comum e viva ainda apenas em cidades pequeninas com chaleiras fumegantes e galinheiros barulhentos, dizem que os mitos são respeitados por respeitarem os moradores, explicam que os lendários não acreditam em quem não acredita neles. O fantasioso resignado por limite populacional.
Moleque que corria demais, que puxava as tranças das meninas na igreja, que roubava pipoca doce do mercado, que não comia feijão, que não penteava cabelo, que quebrava louça, que amarrava vestido de senhora, que ia falar com mulher da vida, moleque assim ouvia a história.
Escutava, duvidava, caçoava, fazia o mal-feito e era punido. Pelo maldito, pelo troncoso, pelo cantante.
Davam vários nomes para ele, a descrição era única e estava na lenda.

“Aquele que cresce na Lua redonda, de pé monstro, perna torta, tronco com casca de Jequitibá, cabeça e olhos vermelhos. Aquele que devora agitadeiros e cospe os ossos para família enterrar.”

A parte que mais assustava a família de Lena era:

“Uma vez por ano, uma virgem nascida no sétimo dia da sétima Lua cheia, do sétimo mês, será banquete.”

Sua família era ela e sua mãe, seus irmãos eram muito mal-educados. Entretanto Lena não temia desde seus 10 anos.

E depois?

Não sou de colocar observações nos meus textos, mas esse eu tenho que abrir uma exceção. ATENÇÃO: Esse texto contém cross-overs e afins, recomendo SERIAMENTE que você leia todos os posts antes de ler esse para não ficar completamente confuso.

Janaína crescera, cansou de ser a GATINHA23 em chats ou mesmo de ouvir crianças em sua cabeça. Não vislumbrava prédios vazios para fantasiar sozinha. As profissões haviam se esgotado, a graça também, havia crescido.
Andava por ruas cinzas e bosques vazios, subia em torres, descia ao chão, ligava e desligava aparelhos, pessoas, papéis.
Sentia sono, repetia palavras, testava memórias que não eram suas e substantivava atos. Não era satisfeita e não cumpria tratados.
Cara fechada e boca amarrada.
Não caía de amores.
Lia, escutava e reclamava. Perspectiva era coisa luxuosa. Influenciava o ambiente e era influenciada. Queria voltar a ser criança e subir em árvores, fazer tarefa, ir se divertir, termo chulo.
Comia.
Metabolizava.
Enchia a cara.
Depressão.
Janaína ía e voltava. Talvez a alcunha de um Dr. Almeida a perseguindo seria motivo, o ônibus fugindo, a vida também.
Voltou a um dos prédios.
Viu os fantasmas correndo.
Conversou com eles e dormiu no chão, sol raiando e mente sacudindo, teve uma brainstorm sem causar tsunamis e foi embora de forma eco-friendly.
Janaína se foi.

A laranja e o açougue

Fui arrastado até a delegacia, iniciaram o interrogatório, respondia à base do pau. Paulada-Resposta. As perguntas eram bem diretas, deixa eu espremer a laranja memorial:

_Você matou?
_Não.
Cacetete em ação.
_Fui eu mesmo, daí?
Cacetada.
_Por que você matou a moça?
_…
_VAI QUERER APANHAR FANFARRÃO?!
_O-ho, Capitão Nascimento de bolso.
Porrada.
_Matei porque ela me traiu. Matei os dois.
_Com o que matou? Como matou?
_Ô rapaz, a história é muito longa, dá até preguiça…
Eletrochoque.
_Tá-tá-tá-só-largggaaa-esse-trec-c-co-co.
Fim da descarga.
_Ok, beleza, allright, tudo sussa, vambora.

Lembro-me quando ia anunciar o meu novo emprego para Cândida, já estava ensaiando discurso e tudo mais, ela ficaria alvoroçada, era certeza. Estalando e sonoro eu coloquei a mão na maçaneta.
Parece que eu sentira o torpismo no ar.
A desgraçada gemia tão alto que não precisei ir ao quarto. Além dos gritos eles batiam furiosamente na parede. Toda minha expressão se espatifou e a reação foi instantânea, peguei a arma e matei-a. Já ele não, ele precisava sofrer para nunca mais fazê-lo e ensinar a outros a lição.

_Elemento, você trabalha com letras?
_Não, sou fazedor de bico.
_Continue a história.
_Ah, marasminho…
Ameaça com uma trinta e oito.

Amarrei o infeliz na cadeira, me senti naquele filme, aquele mesmo. Primeiro fiz o que aprendi quando criança: cortei as ligações, ou ventosas, que seja, do indivíduo, pés e mãos cortados foram imersos numa solução de vinagre, sal e limão. Depois fui arrancando pedaços da pele com pinça, joguei mais sal em cima, furei os olhos, arranquei os dentes, as unhas, cortei a masculinidade do infeliz. Coloquei na caçamba, joguei álcool, larguei ele no centro da cidade. Saí de lá. Vim pra cá.

_A legislação te deixa livre, adultério é crime. Mas o senhor torturou o sujeito e deixou ele morrer.
_Que que isso dá?
_Serviço Voluntário.
_Qual?
_Bom, pra você, elemento, arranjo um açougue de alguma vila do governo.

Após o diálogo, dessa laranja eu me cansei. Tá, eu digo a vós, ou tu, leitor, o que me foi ocorrido: Açougue deu certo, fiquei rico e aprendi a escrever.

Bolsa

_Aquela ali!
Apontava com o dedo tremendo freneticamente, depois de meses economizando o grande momento havia chegado, iria comprar a tão idealizada bolsa com diamantes africanos cravejados por toda a superfície.

Se emocionou quando viu todo um filme passar diante de seus olhos, cada nota guardada, cada sapato que não comprou, cada colar que ignorou, cada celular que desviou a visão.

Encostou na bolsa, sentiu as pedrinhas, se alucinou com o brilho, encantou-se com o cheiro de couro italiano e podia notar um gosto doce que aumentava progressivamente.

_Original?
_Sim.
_É magnífica!
_Sim.
_É minha!
_Pague X reais.
_Mas é muito mais do que eu previa! Isso é efeito da crise?
_Se quiser eu te indico um brechó que fica ao lado do shopping.
_Não me ofenda.
_Vai levar ou não?

Ato desesperado: entregou o dinheiro, pegou o cartão, ele não passou e ela fugiu com a bolsa. Foi presa. Voltou e fundou uma loja concorrente, esbanjou e faliu outras joalheiras. Vendeu sua empresa e comprou uma mega-jazida de diamantes africanos. Morreu afogada nos brilhantes, deixando herança para a filha, que era voluntária da cruz vermelha e desprezava riquezas materiais, que doou para pessoas que gastaram e perderam tudo.

Na lápide da socialite, o seguinte epitáfio:
“Pedras: tiram e dão.”

Edificação

Na clínica odontológica a sala de espera não apresentava muitas pessoas. Era o quarto andar de um prédio cinza, novo, entretanto cinza, um espaço amplo, arejado, com uma enorme janela, vista para o centro. Algumas plantas da moda, revistas velhas e nenhuma televisão.

A moça da recepção era simpática, belo sorriso, belo corpo – atrás das feições morava a indignação de quem se formou em administração e não conseguira nenhuma das carreiras que sonhava, toda sua postura “anti-mulherzinha”, toda sua diferença, tudo não serviu de nada: Estava ali, solteira e ganhando pouco.

Os ruídos mais comuns se revezavam entre sirenes, buzinas e gritos vindos de dentro do consultório do Dr. Almeida – não havia passado em medicina e preenchia um filão de personalidades com buracos e arranhões, descontou sua frustração tentando ser o melhor profissional de sua região sem se corromper jamais, primeira parte executada, a segunda não; percebera que se quisesse clientela fiel e um negócio próprio precisaria fazer serviço pela metade (obturação que não tirava toda cárie, extração que deixava a gengiva inchada, raspagem que retirava mais esmalte que o habitual, etc.) e ter apoios políticos (menos impostos aqui, ajuda sua campanha ali, dou dentadura de graça cá, você me financia acolá) de todo tipo.
Dr. Almeida era casado, não tinha filhos, queria realizar sua fantasia de pegar uma secretária de sua clínica (a única), contudo, Maristela (sim, esse era o nome da moça) considerava o doutor um tanto quanto nojento e asqueroso, ameaçava gritar e processar quando o profissional se aproximava dela, assim o ano ia prosseguindo e as fofocas do edifício também.

A construção era dividida em andares, cinco no total, cada andar tinha dois ou três empreendimentos, não era um mini-shopping, estava mais para um grande utilitário: Dentista, estacionamento, farmácia, papelaria, sex-shop, restaurante vegetariano, artigos esotéricos, lotérica, e outros mais que não se precisa saber.

Almeida possuía fama de mau, as crianças que iam acompanhando os pais que lá trabalhavam, “Não tenho onde deixar meu filho, trago ele pra cá”, eram bem comportadas e gostavam de brincar entre si transformando as figuras dali, em figuras.
A personagem mais recorrente era Malmeida, o bruxo da motossera, todos ficavam com medo quando ele passava. Janaína estava arrastando-se até a clínica, tinha 13 e se dizia “semi-independente”, sabia “se virar”, enfrentava aquela fase engraçada do “não sou mais criança”. Sua parte infantil tremia de medo da primeira vez no dentista, sua parte pseudo-pré-adolescente estava indo e rindo.

Ela passou perto da meninada e ouviu:
_Então Lili, quem o Almeida fez sangrar até a morte ontem?
_Para, Leleco!

Janaína saiu correndo enquanto Maristela apertava repetidamente o botão que chamava atenção da senha da vez. “Esses atrasados, são o tumor da sociedade desde a pré-história, a diferença é que eles morriam e pronto”.