Intensidade Ou Como Um Morto Está Vivo

Todos os nossos flagelos ficaram expostos naquele dia, o que foi bom, derrubou toda a teia que foi se formando com o tempo, aquele clima pesado de competição – não de um relacionamento. É a sinceridade que costumam colocar como elemento primário para a saúde da relação, não é? Faz parte daqueles clichês, do ato que finge ser perdoado, mas nunca é, fica ali, estocado em um depósito de afiadas acusações, em ebulição, prontas para serem usadas na primeira explosão emocional. Falando em coleções, é melhor estocar dezenas de emoções vividas com um peito rasgado do que um mármore liso que não se aventura com medo do nada. Lindo seria se fosse tão simples assim. Tão matemático.

_Você não vai dizer nada?
_E é necessário?

Pus a rosa na lápide.
O epitáfio dizia: “Amou a vida, abraçou a morte”.
Entendi que a vida em si era a única certeza.

_Não quero terminar assim.
_Como?
_Não dando valor, deixando tudo e todos.

Eu usava de referencial a morte prematura do tio dela, ou pelo menos o desaparecimento, os mais próximos sabiam que aquele túmulo estava vazio. Também suspeitei, mas esperei a poeira baixar. Esperei os dias passarem e o cimento do tempo solidificar as tristezas em olheiras.

_Por que ele fugiu?
_E por que não terminamos ainda?
_Eu perguntei primeiro.
_Eu soube pelo seu irmão, seu tio fugiu pra viver uma vida nova, pra ter algum tipo de emoção, ele era bastante rico – ainda deve ser, podia se dar ao luxo de montar uma artimanha dessas.
_Não terminamos pelo mesmo motivo que a maioria dos casais não termina.
_Qual?
_Teimosia.
_Seu tio era, é, não sei qual tempo usar. Ele era teimoso.
_É, como você disse, esse negócio de viver a vida e filmes e tudo mais é pra quem tem dinheiro, muito de preferência, não há felicidade na capital sem capital.
_Não pensaria de forma tão extremada assim.

O vento frio encerrava o diálogo, a conversa que tivemos não foi por palavras em si, nem sobre a proeza do tio dela, foi sobre nossas vísceras voando por aí, foi sobre perceber que o fim existe de certa forma e como isso faz o tempo encurtar e valer mais. Mesmo que seja um impulso que termine em TV e sofá, ele existiu. As flores na lápide se acumulavam, como um sinal de que mesmo que morto para uns ainda vivíamos para outros, independente da verdade.

Queime

Cultivou seus objetos com fervor, desde o primeiro peso de papel até o último carro; fez como seus semelhantes, juntou e organizou toda sua história material em uma mesma casa – que no fim também era um grande amontoado de matéria.
Assim, mesmo que nenhuma das paixões carnais e vivas correspondesse a expectativas ainda teria seu refúgio, sua redoma, repleta de minúsculos pontos inflados de particularidades e valores estritamente individuais.
“Vocês não me decepcionam.”
Sentia o coração no tique-taque do relógio suíço, seu estômago trabalhar com a comida americana, seu cérebro elétrico com os equipamentos do Japão, todos explodindo das memórias do eu-mesmo-quando-vivi-algo-que-eu-fiz.
Até o derradeiro dia.
Um bando de rapazes que tudo perdeu resolveu marcar o nome na história da cidade e de quebra findar a própria existência, o ato era característico e repetitivo: “Retirem as pessoas das casas, destruam os bens e purifiquem tudo com o mais claro fogo.”
Tiveram sucesso durante uma chamuscada semana, até alcançarem a última casa, em que morava um solteirão milionário, depois do roteiro cumprido uma surpresa tomou conta do tempo: o dono da residência preferiu voltar para as chamas, gritava enquanto agarrava sua geladeira, sua pele perdia a forma.
Um dos comparsas da Gangue do Hecatombe – era esse o nome do grupo – saiu do estado de choque e foi tentar retirar o que restava do sujeito. Entrou nas labaredas:
_Nunca quisemos matar alguém, você não vai estragar tudo!
_Eu sou essa casa…. – O ser pastoso respondia em guinchos fatais.
_Junte-se a nós! Nossa missão é resgatar os humanos dessa ilusão que vitimou você!
_Nãããooo…

Ataduras.

A gangue estava presa, não foi executada como acharam que seria o fim. Ainda sem compreender o acontecido – é bom ressaltar que eles se entregaram – estarrecidos, souberam que receberiam uma visita.
Era um homem? A vestimenta era barata como pano de chão, mas o que chamou atenção foi a corpo todo coberto com metros de ataduras, e os olhos, vermelhos por completo. A voz era robótica e direta:

_Eu não existo. Provavelmente isto que não está pode ser um bom chefe para vocês. Um bom discípulo da filosofia criada, até porque suas carnes irão degradar aí, nas grades. Contudo mais pessoas sentirão o que o meu falecido corpo sentiu. Não me apanharão. Como prender o que não é?

E apareceu nos jornais como o maluco incendiário que auto denominava-se o “Anti-matéria”, que fundou seita com células mundiais, rituais pirofágicos e símbolos de luta cativantes.