Sonhos Lúcidos – 5

Na sala de minha residência um objeto estranho, dei-me conta que era sonho deste ponto, era amarela a hélice que girava preguiçosamente, o que tornava impossível a não-notação da única pá girando. Não havia vento.
Pus meu rosto em frente ao pseudo-eletrodoméstico, sentia odores apenas – um ventilador de perfumes? -, o primeiro e solo era doce, lembrei-me de algum lugar bom, é assim que se tem o déjà-vu de um déjà-vu?
Nas lembranças – fui arrastado para elas – eu estava só em minha casa. Havia um aparelho novo. Não tenho receio em afirmar que este foi o sonho mais longo e repetitivo.

Sobre Lixeiras e Onças

A chuva cessava com a tarde, o tênue ar úmido recebia a noite com um tenro cumprimento, um gesto de solenidade muito comum naquela época, naquele lugar.
Chão batido e rua de terra definiam o hábito e o ritmo dos moradores daquela comunidade; viviam em conjunção com o cerrado, se fosse vontade sua enumerar um muro, um marcador de território, qualquer morador responderia apontando lixeiras, com seus troncos sinuosos e folhas rígidas. O verde brilhante ornamentava o movimento das mulheres que usavas folhas como eficiente lixa.
A noite aterrorizava os mais novos e inspirava os antigos, ambos tinham em comum a limitação física para ofícios pesados e a leveza de pensamento dada a estes que não estavam amarrados ao meio da vida, mas sim, a extremos. A exuberância da mata perto do riacho – que começava a ser degolada pela presença humana – tornava-se sóbria, azulada, todavia ainda poética, não como uma virgem radiante, mas como uma sábia misteriosa, a cigana que alguns pintariam.
Vegetação presente perto da estrada era sinônimo de amarelo-poeira, de dia era feio, seco, morto-em-pé, depreciativo; com a transição de períodos de doze horas, o mato nulo vertia-se em sombras, mais elegantes, ainda sim pouco instigantes, porém formavam na escuridão uma trama de suspense que escondia alegorias imaginárias, – ou verdadeiras, por quê não? O que é a verdade, enfim? – instituições firmadas pelos sertanejos cerradeiros dali. Quando havia Lua cheia o cenário estava amalgamado.
Do ponto de vista Darwiniano, tinha-se uma das mais evoluídas agrupações botânicas; o bioma ardia em chamas agostinas para renovar-se, tinha relação íntima com o fogo, com a morte, como a fênix que precisa do fim para que a cor brote, para que a energia orgânica desperte em vívida luz. Do ponto de vista dos moradores, era uma casa, uma singela, arisca e traiçoeira casa, que como a cobra-coral, necessitava de atenção na diferenciação para o domínio.
_E desde aquele dia, nunca mais entrei no fundo dessa imensidão verde.
_Verdade?
Era uma roda em que um senhor de barba recém-feita assustava os infantes de um colégio, uma excursão, a professora – pobre dela – não conseguira conter os alunos que o dono da propriedade domesticou com poucos olhares e muitos fatos locais.
E como em qualquer grupo de ouvintes, não eram todos que oravam a condição, dois moleques desdenhavam cochichos:
_Isso é só para distrais os bobocas. Não tem nada por aqui.
_Eu prefiro não duvidar.
Duvidaram e deixaram o grupo, em silêncio os aventureiros de apartamento foram buscar repressão maior do que a que eles não recebiam.
E o ancião continuou:
_Nossos filhos cresceram aqui obedecendo a fome do cerrado. Uns dizem que tem olhos, outros falam que a voz dela é de rachar aroeira, só que todo mundo concorda com a boca do mundo que ela tem.
_Boca do mundo?
_Sim, porque com a boca ela pode engolir tudo de uma vez, sem pensar na mãe de vocês ou na escola.
É bom abrir uma observação aqui. Seria tolice pensar que os que prestavam atenção eram os mesmos que acreditavam. Dois ou quatro estavam em sintonia, o resto preenchia chamada e ria por dentro “que jeito mais besta de falar de uma onça”.
Ao menos ficaram por lá.
Os dois hiperativos não puderam despedir-se apropriadamente, a mata mastigou-os mansamente.
Com o fim da viagem notaram a falta de alguns números na chamada, quem mesmo?
Com o fim da presença estrangeira, as lixeiras estavam com copas cheias.
Com o fim da fome a beleza voltara, beleza local e privada, resguardada por senhas imediatistas e fatais.
E as noites continuaram ciganeando.

Gotículas Concretas

E hoje é como um daqueles dias chuvosos em que nada se resolve, nada se soluciona, é um dia de atraso, pesado e enfadonho, em que não há progresso ou tentativa; originalidade, particularidade ou necessidade não eram predicados daquelas vinte e quatro horas.
Desses dias em que a angústia coletiva era palpável, bastante áspera, doía com propriedade, a água que dá vida era causadora do mais abundante marasmo, tédio era o único produto encontrado nas desaparecidas bancas de quinquilharias asiáticas. Das cores brutamente expulsas pelo cinza, só restava um suspiro, suspiro que havia exorcizado a última nota de satisfação acessível.

Dias de chuva.

Olhar para cima não era crime nesses dias. Percebia-se tudo, toda escuridão, vasculhar o teto infinito em busca de algum ponto causador de cegueira, um esquecido ponto.
O pão seco, o café aguado, a comida empapada, a roupa amassada, o desodorante barato, o trânsito que não fazia jus ao nome, os rostos apagados e os suspiros.
Novamente.
Todavia, as exclamações negativas eram mais trágicas, eram pedaços de esperança, fragmentos de vida, que deixavam aquilo que já foi uma aquarela.

A Revolução Dos Exilados – Final

Nota do autor: Não se localizou? Parte 3

_Como? Quero dizer, eu, eu…
_Shh, querido, está tudo bem agora.
Ela afastou-se e pude ver onde estávamos: no 26, era meu apartamento? Não era daquela senhora velha? Tudo estava perdendo novamente a lógica, era um delírio, era minha mente esquizofrenizando-se.
Na sala estavam em um semicírculo olhando para mim:
Lídia, a viciada;
Plínio, o fracassado;
Joaquim, o bem-sucedido;
O atirador, o ignorador;
Eu, o neutro.
Ou seja, eram seis indivíduos no recinto, fixei o olhar em mim mesmo, estava com o rosto seco, um papel em branco, e os outros exprimiam o habitual, pelo que parece o eu (o 1º) era o motivo da reunião extraordinária.
Que seja, linearidade era luxo.
Então a minha cópia centralizou a atenção em mim e começou a falar:
_Tudo está bem agora.
Esse era o novo slogan dessa gente?
Acontecimento notável: O que eu pensava era ecoado em altíssimo som pela estrutura do condomínio, diria até daquele município. Tive que parar com o constrangimento e silenciar-me por completo. Deixe o meu segundo eu falar, pois então.
_Tudo está bem agora. Você agiu de forma espetacular durante este complicado período por qual passamos, cumpriu com todos os protocolos e ordens necessárias, penso que agora a harmonia pode ser restabelecida e a convivência mútua volte a pulsar. Claro, eu só formalizei a situação atual, não devo ter respondido nenhuma pergunta sua.
_Não.
_Pois bem, primeiramente vamos dissecar os planos para você entender o contexto em que está inserido.
As paredes do prédio desmontaram-se como blocos de lego, o chão, o céu, era tudo maleável ou destacável, no fim da reorganização espacial, o que sobrou fomos eu e os cinco. Todos de pé, flutuando no nada. O nada ganhou súbita forma, estávamos em uma esfera, as paredes exibiam trechos da minha vida, trechos que eu não sabia que poderia lembrar.
_Somos você e você precisa de nós para viver. Somos espectros de sua personalidade, pólos das suas emoções, criação sua. Aposto que devido ao número de traumas já adquiridos recentemente, a surpresa não virá. Posso enfim responder seus prolongamentos de perguntas sobre nós e você. Lídia surgiu de seus anseios solitários, era analisar para ver quão frágil é a ideia de uma garota que faz o que ela faz e que goste de você, ou mesmo, exista.
Olhei para Lídia.
Perguntei o necessário.
_Então, nosso verão, tudo, você, é minha invenção.
_Claro que sim, meu amor.
Então o eu que não era afetado por nada (maldita neutralidade) continuou:
_Novamente, tente notar as incongruências de suas poucas lembranças: Sua cidade é longe ou perto do mar?
Lembrei do ônibus de ar pesado e de minhas reclamações, todas apareciam na esfera ao lado da minha vista das rochas e ondas frias.
O que era real?
_Continuando. Plínio é a representação da soma de suas derrotas, era o seu colega de fossa, para quem recorrer quando queria ter certeza de que a vida alheia poderia ser pior do que a sua. Use o bom senso: quem vestiria-se de chofer por um vizinho visto de vez em nunca? Apenas um laço mais forte, e não era esse o caso, justificaria tamanho esforço vindo de você. E acredite, eu conheço-te, conheço-me, conheço-nos. Tudo que você sabe sobre Plínio também é falso, imaginação boba.
Apenas queria ouvira as histórias restantes e morrer. Morrer de verdade, enquanto assistia o que chamam de minha vida percorrendo a esfera visual.
_Joaquim e o atirador não precisam de muita explicação, basta saber que um representa seu ego no estado mais inflado enquanto o atirador é sua porção de fobia social, o medo de ser ignorado e atropelado pelo que não conhecesse ou o que não vivera ainda.
Sumiram quatro.
Dentro de mim só havia eu, eu e as memórias, adulteradas ou não.
Perguntei:
_E os bilhetes?
_Que bilhetes?
_Que você, digo, eu, mandei-me. Incluindo o da urtiga.
_Eu, eu, não sei do que você está falando.
_Olhe lá.
Projetei a cena no ambiente.
_Deve ser um engano ou algum funcionário brincando com sua desgraça.
_Aliás, como eu fui parar em um hospital?
_Tudo será entregue agora.
_Eu não consigo aceitar o fato de que eu não saiba o porquê de eu ter escrito um bilhete para eu ler.
_Mas não sabe, vamos lá, passou, está bem.
_Ora essa, se sou eu conversando comigo, posso prever sua resposta então.
_Não, não pode, este é o ponto. E agora vou revelar-lhe o porquê da minha existência e como chegamos aqui.
_Vai lá.
_Tudo começa quando você muda para a cidade do litoral, isolado, quieto, só. Foram horripilantes os primeiros dias em que você rasgava noites sem sono, era solidão cumulativa, profunda, que impedia você de encontrar sentido em socialização, qualquer um não passava de qualquer um, de superficial, de fútil, de descartável, nesse processo o destruído era o mesmo que desprezava, a depressão engoliu seu humor e perspectiva social, alguma estratégia deveria ser adotada, era preciso reagir, sozinho começa, sozinho termina.
A esfera foi tomada por uma atmosfera fúnebre, com provavelmente a pior fase da minha vida.
_Daí nasceu a ideia mais prática que já existiu – você resolveu eliminar o vazio antropológico criando projeções baseadas em suas próprias características, assim, poderia viver e conviver com quem desejasse no momento que quisesse, nasceram Lídia, Plínio, Joaquim e o atirador.
_E você?
_Chegarei lá. Pois agora você suportava vida de cubículo, e o fez de forma incrível! Até flagrarem, na verdade, quem notou foi o infeliz do cubículo oposto ao seu, ele já teve o que merecia.
_Você o matou?
_Não. Que matou foi você.
_Por isso os policiais!
_Sim, mas deixe-me terminar.
_ARGH. Tudo bem.
_Não acharam normal que você preferisse nossa companhia a daqueles lixos, fizeram com que você fosse a um psiquiatra. Tsc, tsc, você não precisaria ter passado por todos os impasses, porém o que passou trouxe uma nova pessoa, não é? Agora iremos deixar sua mente nos eixos.
_Pelo que eu passei?
_Pois bem, o remédio não nos agradou nem um pouco; além de ser um protótipo, era totalmente desnecessário a nosso ver. Ele nos fez enfrentar péssimos momentos, sabia? Quase morremos! E responda meu amigo: como você sobreviveria sem a nossa existência?
A esfera perdeu sua forma. Agora sim eu estava em um monólogo de duas pessoas, no vácuo.
_Você foi muito, mas muito mal agradecido, demos a dádiva da vida novamente! E como você retribui? Com contra-ataque, portanto nosso ato é pautado em razão. Não precisa perguntar, sim, confundimos sua mente e obtivemos controle total de você.
_Como assim?
_CALE-SE!
Fui invadido pela dor mais excruciante que existe (ou não), eu tinha ideia de que não era real, porém estava impedido de fazer outra coisa senão ouvir enquanto meu corpo contorcia-se.
_E FOI ASSIM! VAI MORRER? VAMOS TODOS! Então, você quase faleceu, os remédios cessaram, recuperamo-nos. Nesse período você ficou sobre nossos cuidados, na nossa versão da sua vida. Suas memórias eram nossas, você fez o que fez para poder entender que precisava de suas criações. Toda ida a lugares, tudo, percebemos que você ia despertar, então preparam sua volta ao mundo material. Ninguém vê com bons olhos um sujeito que tentou suicídio com overdose de remédios, não é? Overdose de remédios, isso mesmo, não houve sangue, ideia genial, concorda?
E o sentido aparecia, mesmo que em quantidades moleculares, mesmo em meio a tanta dor.
_Foi aí que eu nasci, durante seu período de recuperação, da nossa tentativa de fim coletivo, descobri que para você entender que não há escolha, a não ser servir-nos, coordenamos a sucessão de traumas, incluindo seu ato final, o ato redentor. Sua mente é nossa.
A dor desapareceu.
_Como nos conhecemos excelentemente, deve saber que não há escapatória além de manter-nos, entendemos que se precisar, não falharíamos em acabar com sua existência, de verdade. E não, não é isso que você quer. Portanto, volte ao seu estado de semi-sobriedade para prosseguir.
Olhei no meu avatar neutro para ouvir uma última frase antes do despertar.
_Pode chamar este evento de “A Revolução Dos Exilados”.
Acordado.
Estava num barco, que seguia pela costa.
_O rapaz tá de pé. Ei, você, é, você. A gente vai com esse barco até um aeroporto em que pegaremos um teco-teco com destino a floresta. Achamos você boiando perto de uma praia vazia de madrugada, pelas roupas não parecia ter decência, precisamos de mão-de-obra. Você vai ganhar moradia.
_Eu, eu vou trabalhar em que?
_A gente recebe uns computadores velhos na nossa comunidade. Com suas roupas só achamos um crachá de empresa de informática. Lá você vai ter casa e alimentação, algumas raras vezes um dinheiro para usar numa cidade próxima. Se quiser, continue conosco, se não, pule do avião.
Diante do meu retrospecto, aquela, desde que nunca questionada, era a oportunidade ideal. Vou reconstruir minha vida.
_Tudo bem, vou com vocês.
As instalações do barco não eram as melhores, mesmo para quem não nutria expectativas, a viagem foi demorada e a minha cabeça só foi funcionar em cima das nuvens.
Era hora de repassar a situação vigente. Vamos usar o auxílio de números para o caos ficar menos aparente.
1 – Meus registros, minhas memórias, estavam enfim, vívidas. Porém eram em carga dupla, em parte do real, em parte do metafísico, eu já conseguia distinguir, dolorosamente, qual a origem de cada uma que repentinamente, vinha à tona.
2 – Eu não tenho controle sobre meu intelecto, o que é surpreendemente vergonhoso e desesperador; estive tão compulsivo e só que, ainda mais repugnantemente; criei personalidades que agora me dominam.
3 – Sou oficialmente foragido. Tomara que esse tal distrito fique, de fato, no meio da floresta, o que preciso agora é de uma mudança completa, claro, isso tudo pode ser outra emboscada e então eu estaria condenado, na melhor das alternativas a minha vida já não é mais minha, portanto pânico é desnecessário.
4 – Ainda não descobri a fonte daqueles bilhetes estranhos, entretanto, se a tal pessoa morava naquela cidade, tarde demais. É isso, eu preciso conversar com esse cara, mas antes…
Estava anoitecendo. O céu ficando chumbo-prata, sem lua, a composição das árvores montava um panorama grandioso com as nuvens constantes, o tipo de vista que só é possível com um avião e olha poético.
Repousei fisicamente.
Já no meu cérebro, a noite apenas começava.
Pensar que os espectros que eu exilei voltariam-se contra mim poderia parecer piada, uma anedota macabra, porém este era eu indo a luta final contra mim mesmo, uma batalha pessimista, não havia remédio para usar ou um apartamento para praticar auto-lamentação até ficar triste e voltar ao normal. Acho inapropriado pensar – brigar para continuar pensando, que ponto eu deixei atingir – que as nossas maiores nobrezas emergem assim, no leito de morte.
Contudo, era evidente o que iria acontecer: eu perderia o controle, saltaria do avião e apodreceria em meio ao bioma, a missão mais nobre da minha trilha social seria adubar alguma árvore, como herança eu deixaria alguma piada, um meme se fosse sortudo de revirarem meu passado.
Maldita Revolução.
Pronto. Estava dormindo. Eu apareci, digo, meu eu neutro.
_Dia agitado, não?
_Bastante para uma segunda-feira.
_Sabe, vimos de camarote seus pensamentos, rimos e relembramos o quão previsível você pode ser para si. Suas divagações, seus insights luminosos…
_Hmm.
_Não ficamos nem um pouco irritados com seus planos, porque, cá entre nós, você não tem a mínima chance.
_Tenho sim.
_Tem? AHAHAHA. Vai lá. O que te faz pensar isto?
_Suas vontades de viver são maiores.
_Claro que não, certeza que vai tentar atacar desta maneira?
_Até posso.
_QUE NOS IRRITAR?

A dor veio.
A deixa também.
Com ambos apareceu minha única chance, era o cheque mate em uma jogada, independente do jogador.
_SINTA NOSSO PODER!
Eu sangrava rios e rios da pior dor projetável, enquanto isso a visão do meu corpo aparecia, a visão do boneco controlado, eu estava pendendo próxima a porta do aeroplano, o piloto estava concentrado enquanto os demais dormiam em sono denso.
_É ISSO QUE VOCÊ QUER?
A porta abriu-se. Eu ia cair, não ia cair, eu ia cair, não ia cair.
Eu estava caindo.
_NÃO! SEU IDIOTA! IMBECIL! ANIQUILARÁ A TODOS DESTA MANEIRA!

Pense o pior dos sons combinado com o mais amargo dos gostos somado ao mais podre dos odores; tudo isso aplicado na mais horrenda paisagem com o tato mais angustiante (como a famigerada sensação do giz arranhando o quadro) possível. Foi o que suportei nas duas horas que se seguiriam, até eu acordar no avião que cruzava um horizonte que amanhecia; o teco-teco ia pousar.

Devo explicações sobre o que aconteceu, entendo, não hesitarei em explanar. Na verdade, vanglorio-me do ato em confins mentais, eu resolvi derrotar-me com o que eu mais detestava em infância: Imitações.
Aproveitei enquanto toda energia do inimigo íntimo era utilizada em torturas para compor um exército de novos eus, usei de todas as memórias, ramificações emotivas, lembranças constrangedoras e todo tipo de material mnemônico para moldar meus soldados, fiz isso na mesma velocidade em que hemoglobina era expulsa de mim, então, quando ele quis demonstrar superioridade controlando meus passos, assumi o pode através de uma segunda camada – o controle do controle – projetei a falsa ilusão da queda livre.
Todavia, atingi a confiança excessiva do meu parasita, que não suportou a proximidade do fim (a qual eu fui ironicamente sistematizado) e auto destruiu-se. A explosão metafísica foi de tamanha intensidade que levou todos os caracteres criados, em uma homogeneização sapiente, assim, entrei em estado de coma por duelo subconsciente. Inaugurar categorias não era uma das minhas metas biográficas.
É difícil afirmar e agarrar a vitória quando esta parece tão relativa e tão antiteticamente palpável. Posso dizer, agora, que sou rei de mim.
E nessa condição consegui ainda surpreender-me.
Chegamos na comunidade, a rotina era úmida e quente, baseada no rio, não era a miséria, tampouco selvageria, era bastante complexa para sua localização, descobri que dormiria todas as noites numa palafita cheia de insetos.
Na primeira noite o ambiente pouco importaria.
Era a noite da solução.
A resposta atordoante veio.
Os bilhetes.
Era um novo diálogo comigo, no entanto, desta vez eu estava integrado com o que falava.
_Parabéns.
Eu falava, eu ouvia.
_Agora é hora de desconstruir o nível mais oculto do seu subconsciente. Nível arquitetado por você antes do caos completo. Este é o último bilhete.
Os arrepios vieram naturalmente.
_Se você está executando-o é sinal de que tudo deu certo. O primeiro bilhete foi lido por você antes da tentativa inicial de suicídio, o segundo seria lido se saísse vivo dela e o terceiro ao livrar-se de si mesmo. Planejei a criação dos bilhetes após a morte do seu colega de trabalho. Descobrimos que cedo ou tarde perderíamos o poder sobre a própria consciência. Então jogamos arriscado tentando prever todas as possibilidades. Acabou com você vivo de duas tentativas de suicídio e de uma épica batalha mental.
_Só não entendo uma coisa.
_As urtigas? Elas foram requinte da enfermeira, ela costumava dizer que punia idiotas suicidas desse modo.
_Então é isto, agora sua mente é limpa e aberta. Você foi vitorioso, vamos viver.
_Sim.

Guardei tal noite como o registro definitivo das memórias metafísicas. As reais estavam lá, algum dia eu voltaria para rever meus entes-queridos, algum dia.
E para resolver o problema da solidão foi simples: Saí da minha jaula social à força. Assim conheci a mulher da minha vida (real) e tive dois belos filhos.
Entre eles uma menina que terei que conversar com mais freqüência, quatro anos e já tem uma cidade de amigos imaginários.

A Revolução Dos Exilados – Parte 3

Nota do autor: Pegou o bonde andando? Parte 2.

Acabou.
Era sumir com minha consciência e obter a resposta do dilema existencial da humanidade.

O branco, era a luz, a incessante e ofuscante luz de, de, de…
Uma lâmpada fluorescente.
Uma lâmpada?
_Bom dia.
Uma enfermeira, sem sorriso, sem cadência, sem amor, acordou-me. Falou alguns procedimentos sem perceber que eu não a via, tampouco conseguia ouvir, era um problema físico? Perdi sentidos? Posso sobreviver a isso afinal, é, nesse meio tempo formularei planos para um futuro bom, isso, cada ser deve ter sua experiência transcendental, essa é a minha, chega das máquinas, chega do cinza, vou para uma fazenda, vou ter uma vida verde, é, vou ser agricultor de comunidade, poderia até pedir dicas para os três malucos que tentaram sem sucesso acabar comigo.
Espere um pouco, eu ouvi o que ela disse.
Ouvi.
Esse semi-bloqueio mental é um porre mesmo, ela saiu da sala, agora o ar expandiu-se, cheiro de hospital, um bilhete em um vaso de urtigas.
Quem mandaria um vaso de urtigas para um doente?
Pegar o papel sem ferir minhas mãos foi algo que eu deixei de tentar, depois eu coçaria e a sensação passaria, dane-se, pego logo e, argh, doeu mais do que eu imaginei que doeria, essa letra não era-me estranha:

“Acordou campeão? Pois é, este aqui é o penúltimo dos seus registros, o primeiro você já fez e acharam, o último está em um lugar inusitadamente inusitado.”

Eu escrevi para mim mesmo?
Que confusão.
Tive alta, não consegui absorver muito detalhes do estabelecimento de saúde, nem lembrei-me de perguntar algumas obviedades, só queria ira pra casa e ver como estava o meu ferimento, o tamanho da cicatriz, frente a um espelho. Comprei um no caminho, engraçado, o edifício estava limpo e as crianças não brincavam em pleno domingo ensolarado.
Vamos lá senhoras e senhores, ver o tamanho do meu ferimento no meio do peito.
Gostaria de ficar admirado se houvesse cicatriz.
Eu estava mais vazio que o edifício.
Que diabos eu fazia no hospital? Vamos procurar algumas receitas ou notas ou exames.
Nada.
Eu ia tentar entrar em contato com aquela gente, meu único contato pessoal mesmo, eram eles, meus conhecidos de morte, cada qual com sua esquisitice, mediocridade, cada qual com sua desgraça. Era só ir no 26, que era o apartamento do, do.
Quem morava no 26?
Não, esse desespero não vai dominar minha mente. Era por causa do baque hospitalar, é, toda a situação sucedida, o papel, a minha grafia, as informações voltando, eu precisava era dormir, como eu conseguiria dormir com uma preocupação dessa singularidade? Não era justo tampouco lógico que eu ignorasse o que estava acontecendo, preciso checar meus documentos, todos estão lá, isso, meu nome, meu rosto, esse sou eu e tudo bem, mas faltava gente, faltava parte de mim, era como se eu estivesse preso a neutralidade e ao desespero, como se sobrassem-me apenas os instintos e a angústia do zero, era piada, eu não estava esquecendo o nome, era a circunstância, era a circunstância, deve haver alguma foto, número na agenda, vamos checar, de jeito nenhum, quer dizer, eu, eu.
Eu abri a porta do 26.
Lá dentro uma senhora de idade olhava com um rosto assustado para mim.
_A senhora sempre morou aqui? Cadê seu filho?
_Moro aqui faz mais de vinte anos rapaz, meu filho, como você sabe, está na casa do pai dele, hoje é domingo. Está tudo bem?
_Qual a idade do seu filho?
_Olha garoto, você nunca falou com ninguém desse prédio, agora resolve falar comigo, melhor usar outro tom.
_POR FAVOR, SENHORA, DIGA-ME QUANTOS ANOS TEM SEU FILHO.
_Deus do céu, 10.
Fui pro meu apartamento, que piada de mal gosto era essa? A velha provavelmente iria ligar para a polícia, eles iam me pegar pelo o que eu fiz? O que eu fiz? Por que diabos eu mandei um cartão pra mim mesmo entre urtigas? Que loucura eu fiz pra ignorarem-me naquele hospital? Acho melhor tentar manter a calma, isso, relaxar, respirar fundo, 3, 2, 1, não dá certo, ok, vou tentar retomar a rotina, o que eu fiz nos últimos dias pra acordar naquela cama de hospital? Até onde lembro levei um tiro no peito, pra levar esse tiro os três elementos da minha cabeça, acho que mais um contando com o atirador, levaram-me do 27 até o chão, mas por que fizeram isso? O que eu fiz pra eles? Aposto que é um plano conspiratório, é, eu posso ter invadido algum servidor de órgão governamental em tempos de infantilidade, de pichação virtual. Não, espere um pouco.
E se eu estiver inventando memórias?
Então vai tudo desabar, é claro, eu posso esperar os policiais, talvez eles puxem alguma ficha que eu não conheça, aí eu descubro de vez o que acontece com minha cabeça defeituosa, eu provavelmente devo ter algum problema, tenho? E se não for a própria polícia quem está tramando, estão agindo a serviço dos chefões de estado, vamos lembrar do meu passado mais remoto então, essa respiração já não me serve, tentar aprofundar é tolice, concordo com isso.
Iriam fazer de mim o que bem quisessem, eu iria deixar isso acontecer de novo? Aliás, como eu pude ser tão inerte da última vez? Era a porra da minha vida! Que desgraça! É, ahahaha, dessa vez a minha vida será de minha exclusividade, é isso, tudo faz sentido agora, eles provavelmente fizeram o que fizeram para eu poder renascer, agradeço a esses estranhos amigos que me presentearam com a independência, esta é a teoria correta, posso sentir meus neurônios fixando a certeza que agora é uma energia monstruosa, renovadora.
Então eu sou o velho clichê do homem que morre e volta? Ou do retorno triunfal? Ou seria eu só mais um fracassado tentando achar sentido em palavras vazias? Impossível decifrar? Acho que não, certeza que não!
É, eles viriam, iriam caçar esse corpo, porém não vão achar nada! Ahahaha!
Saí correndo, abri a porta da sala da velha, que parecia murmurar algo ao telefone:
“Cuidado com ele, avise aos moradores”
NÃO ERA SÓ A POLÍCIA? HAVIA MAIS?
POIS SAIBA QUE OS DESAFIOS SÃO COMBUSTÍVEL PRA MIM!
AHAHAHAHA
EU NÃO SABIA QUE ERA TÃO RÁPIDO PULANDO ESCADAS, INDO EM FRENTE E PROSSEGUINDO.
E VOCÊS, O QUE ESTÃO OLHANDO?
Olhando.
Olhando.
Olhand…
Era outro tiro?
Não, era minha consciência voltando ao normal, diabos, eu tive um surto de loucura, agora sim, eu teria um motivo pra fugir da polícia, ou pelo menos daquele pessoal me olhando torto. Quem era aquele pessoal?
Era um estranho na multidão, deve haver alguma palavra em alemão para isso.
Iria dormir na rua? Talvez, se as manchetes não noticiassem tanta morte nas noites desprevenidas. Não era uma boa ideia, definitivamente não era uma boa ideia. Dormiria aonde? Em algum bar de certo.
Poderia até pensar sobre se não visse policiais atrás de mim.
Agora era a tão esperada hora de disparar, morava numa cidade portuária.
Das melhores lembranças que cultivo, eu, eu, que está acontecendo? Onde estão minhas memórias? Onde está minha vida?
O cais era um labirinto conhecido, isso, agora era minha margem, comam poeira! Eu estava tranqüilo, estava mesmo, ali, vejo aproximando-se, a região onde as ondas arrebentam-se em pedras, corri mais do que parecia que sabia correr ou os malditos cansaram de mim? Tiraram a acusação? Provavelmente uma operação mais importante do que cuidar de um medíocre desmemoriado.
Tudo bem. Era hora de dar sossego pra todos. E para mim.
As pedras eram frias, ainda mais quando estão chegando tão perto. Não se distingue facilmente a escuridão delas com seus últimos segundos.
Era isso, agora eu iria ficar livre dessa hecatombe social.
.
.
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.
.
_Abandonou a gente por um bocado de tempo hein?
Era o sorriso mais infernal do universo.
Lídia.