Vivo-morto.

_Vamos lá, pegue a pá, crave na terra, retire um punhado do solo, agora jogue no buraco. Vê como é fácil?
_Eu não consigo fazer isso. Me dá náuseas.
_Alguma hora você iria ter de aprender a lidar com a morte de seus animais. Com a morte de um modo geral.
_Mas eu não quero enterrar o meu gato.
_Você vai fazer isso. Quer ou não entrar para a nossa turma?
_Não sei. Vocês me fizeram matar um bicho, sem eu saber que ele era meu e agora querem eu eu enterre assim, do nada, como se eu estivesse fazendo algo rotineiro. Não vai rolar.
_Tudo bem, então enterramos você vivo.
_Seus blefes não me atingem.
_Veja bem, é meia noite e meia, estamos no cemitério longe do centro, não há ninguém além de mim, meu pessoal e você. Quem concordou em participar da iniciação não fomos nós. Quer ter ou não todas as garotas do colégio?
_Duvido que alguma delas saibam do tipo de crueldade que vocês fazem, desse sadismo gratuito.
_Ora, fique sabendo que muitas vem atrás da gente só pra assistir uma iniciação.
_…
_Rapazes.
_NÃO! ME SOLTEM!

O sangue começou a pulsar muito rápido e os esforços físicos pra se libertar da cambada vieram naturalmente. Mas nenhum movimento foi capaz de livrar da situação de horror que o pequeno garoto estava, fora obrigado a assassinar seu animal de estimação e queriam que completassem o espetáculo.

Um barulho. Que vinha do outro lado do cemitério.
Um túmulo se movendo, e saindo um vulto de lá.

Soltaram o menino dentro da vala com o corpo do gato e saíram correndo, todos.

Ele não sabia o que era pior de se encarar, o ritual imbecil pra entrar no grupinho ou isso; agora o sangue pulsava alucinadamente e a única coisa que fazia era tremer, de forma compulsiva, parecia que seu corpo ia arrebentar de tanto pavor. O tempo se esticou.

Era sua vizinha, com um gato em mãos.
_O que você tá fazendo aqui? E esse gato? Quer dizer, peraí.
_Esse gato morto aí é um bicho empalhado, cabeção. Eu vi tudo que eles estavam armando e segui vocês.
_Mas como você teve coragem de vir aqui esse horário, e sair de um túmulo?
_Tenho um amigo que é coveiro, de vez em quando eu venho visitá-lo aqui mesmo, conheço ele do tempo que eu era gótica, ótimos tempos ahahaha, o túmulo estava vazio e eu não saí de dentro dele, eu estava escondida entre outras sepulturas e lápides.
_Pra quem chegou faz um mês; eu ainda sei bem pouco de você.
_Você nem imagina.

E o garoto saiu com sua vizinha e o gato original, vivos. Engraçado foi ver umas silhuetas observando-os.

Enfermeira

Criados juntos, o filho adotado e o biológico cultivaram uma boa relação até o incidente. Numa madrugada incômoda, o biológico, que será nossa vista agora, acordou e a porta oscilava, um vento frio e molhado vinha de fora.

O carro não estava mais em casa, o céu escuro perdeu as estrelas e a vizinhança estava silenciosa. Bichos uivavam tristemente e a respiração não estava em padrões normais, algo estava levando o ar. Levando alguém.

E o sinistro se manifestou no tocar do telefone.

_Lucas.
_Pai? Por que vocês saíram? Aonde vocês foram? Como vocês estão?
_Lucas, meu filho.

A voz falhou.

_Pai, como está a mãe?

Soluços.

_Pai!

Lucas estava meio desorientado, porém tudo se encaixou num clique sombrio. Quando Jorge, amigo da família, veio buscar o garoto a situação se escorreu num jato que causou uma dor de cabeça insuportável e intensos calafrios.

_Lucas, seu irmão teve um ataque sério de asma, seu pai teve que correr e a chuva estava forte… não sobrou muito do carro… o Iago está internado e sua mãe está muito mal.

Bem, retomando a história, como era de se prever, Lucas ficou órfão de mãe, pai com sérios transtornos psiquiátricos e um irmão certamente inválido. O tempo passou e o consciente de Lucas reagiu de forma comum, tornou-se frio como defesa a eventuais traumas sérios. Seu irmão não, este iria acordar hoje.

Agora acompanharemos dentro das possibilidade de Iago.

Após uma tontura de um sono amargo e longo, moveu as pálpebras. Seu irmão estava no exato momento e reagiu em três estados.

Levantou, chorou de leve, respirou muito profundamente e de súbito foi atingido por uma lembrança, um estalo. Daí pra raiva animal foram poucos instantes. E ele apertava o pescoço com uma força que nunca teve.

Iago sem ar e quase sem vida. Não fosse pela enfermeira que entrou em sala. Separou os irmãos. Iago viu seu irmão canalizar a energia para as cordas vocais. Colocou as mãos na cama e se sentou para tentar ouvir o que viria e o que veria:

_É TUDO SUA CULPA! SE VOCÊ NÃO TIVESSE ESSA CRISE IMBECIL, INFANTIL, FALSA, SE NÃO HOUVESSE ESSA CRISE O ACIDENTE NÃO OCORRERIA E AS DESGRAÇAS SERIAM UMA REALIDADE DISTANTE!

A enfermeira sentou-se num banquinho-escada e contemplava também.

_SE MEUS PAIS NÃO ADOTASSEM ALGUÉM NÃO ACONTECERIA ISSO TUDO, NÃO HÁ NINGUÉM COM ESSA CARGA GENÉTICA DEFEITUOSA QUE VOCÊ TEM, NENHUM DOENÇA HEREDITÁRIA, SUA FRAQUEZA INFECTOU A RAIZ DA NOSSA CASA!

_Lucas, você está enganado.

_CLARO QUE NÃO! E SAIA DESSE HOSPITAL AGORA, NÃO PAGAREI MAIS NADA PARA VOCÊ, SEU CARRAPATO!

_Lucas. Fale com o Jorge.

Lucas queria colocar Iago pra morar debaixo de um viaduto. Não conseguiu. A enfermeira viu documentos e afins, Iago possui metade dos bens que o pai deixou ao falecer. Ele escreveu o testamento em estado são, que fique claro.

E Lucas falou com Jorge, afinal Iago pra ele era uma parede apenas, mais nada. E Jorge foi rápido.

_Escondemos isso de você. Seus pais haviam adotado uma criança, entretanto queriam muito um filho biológico, mesmo que isso pudesse causar complicações pós-parto. Falaram com o médico, e ele foi claro ao dizer que a gravidez poderia representar um ponto final a plena saúde de sua mãe. Eles foram adiante. Tiveram você, sua mãe adquiriu sérias complicações que fariam com que ela retornasse ao hospital periodicamente para impedir sérios quadros hemorrágicos. Quando você nasceu explicaram isso como doença do Iago, ele nunca foi asmático, era pra você não se sentir culpado, a noite em que sua mãe faleceu, tudo começou por causa da sua crise de choro por um brinquedo quebrado, crise que durou dias, sua mãe abdicou da própria saúde para fazer seu filho parar de chorar. A hemorragia aconteceu e o acidente também. A culpa foi sua, substancialmente sua, Lucas.

Bem, agora vamos para o universo da enfermeira.

Ela enriqueceu com o dinheiro do casamento com Iago, seu cunhado estava em algum sanatório e seu marido foi parar debaixo de um viaduto por ser incompetente.