Sonhos Lúcidos – 8

O céu conversava comigo durante este sonho, queria dizer algo, avisar para fugir, fugir dele mesmo.

E como num livro o firmamento derretia como gosma, uma gosma roxa com diamantes encravados.

Ia caindo em manchas, formavam asteroides pegajosos no chão.

Eu corria, vai saber o que um pouco dessa substância me causaria?

E corri olhando para o chão. Onde está o chão? Eu fui atingido? Fui.

Tive noção que sonhava.

Bom dia.

Sopro Acalantado

Hoje eu te vi, na água, sorria para mim, enquanto eu nadava de um lado para outro pude te sentir, você fluía, era um abraço hídrico.

Eu transitava e brincava com a gravidade e o empuxo, não sentia o peso do piso, como um grande útero, seguro.

Talvez um útero seja sua atual morada.

Talvez palmos de terra.

Talvez dentro de mim.

Hoje eu te vi, voando, brilhando, em todas as formas de leveza que você representava, de sua leve passagem e sorriso.

Um abraço.

Xícara e Cabelo

Posicionou a xícara de maneira automática, um hábito, mais um dentre sua coleção rotineira, mais uma dentro de sua coleção de preciosidades. Eram uma forma de defesa e ataque, segundo o indivíduo eram nada mais que facilitadores, segundo quem via era uma barreira, quase clara, que dificultava o contato e a má interpretação vinha sempre à tona.

A asa da xícara havia quebrado, o dia não era memorável, o estrago por outro lado sim, temos que entender que para afetar a xícara de porcelana algo muito grave deve ter ocorrido. Não houve estardalhaço ou grandes emoções, sequer houve uma manifestação sentimental, e talvez isso tenha sido o mais grave, a ausência da compaixão do momento, o cálculo que atropelou a humanidade ou superou-a em evidência.

Uma prova:

– Chumaços de Cabelo –

E era isso que preenchia a xícara agora, o cabelo era fino e ralo, parecia que ia desfiar com água, como algodão doce.

Pena que de doce nada houve.

Havia encaixado o cabelo dentro da xícara, e estava com olhar fixo, sugeriam que encarar a situação de estresse era a melhor maneira de superá-la.

Tudo bem. Que seja feito. Relembrar.

_Eu vou embora daqui.

_Não faça esse tipo de brincadeira.

_As malas estão prontas.

Veio o puxão, choque, ligação.

 

Por dentro ficou estarrecida com o que vira que fizera por fora.

Puxara os cabelos da menina, que puxou o próprio eixo de volta, em direção contrária para a infeliz-batida-de-cabeça-para-UTI.

Era um momento de alegria, seria um momento de alegria, era um momento de alegria, seria um momento de alegria.

A garota estava bem e voltaria no máximo em uma semana.

Esqueceria do fato.

Sua mãe precisava esquecer também.

Depois jogaria a xícara, o cabelo e o choro no lixo. Não são todos que tem uma nova oportunidade afinal.

Hortifruti

Joguei a sacola no porta-malas, ela ressoou e fez um barulho estranho.
Eram as compras da tarde, os objetos e quanto eu poderia falar sobre ele enriqueciam e devastavam a minha vida. O número de informações inúteis que podemos acumular.
O que fez barulho era uma melancia, acho que escolhi errado.
Escolhi a mulher errada.
_NÃO FOI ESSA QUE EU PEDI? FOI!
_NÃO PEDI VOCÊ TAMBÉM, MAS AÍ ESTÁ!
_PEDIU SIM! OLHA AQUI!
Eu pensei por um momento que ela iria furar meu olho direito com aquela aliança, a súbita mudança de foco visual, do rosto dela que parecia longe – e estava mais longe do que uma distância física poderia ditar – fez com que eu precisasse mais tempo do que de costume para responder. Logo eu, que tudo respondi tão rápido, tão sem vacilar.
_AGORA FICA EM SILÊNCIO? MAS VEJA SÓ, QUE IRONIA, VOCÊ QUE NUNCA ME DEIXOU FALAR!
_NÃO DEIXEI? EU FUI NA PORRA DE UM SUPERMERCADO, VOLTEI COM O QUE VOCÊ PEDIU PRA ESSE ALMOÇO RIDÍCULO E VOCÊ ESTÁ AQUI, SÓ FALANDO, EU SÓ RESPONDO AS SUAS ASNEIRAS!
_VOCÊ QUER FALAR SOBRE ASNEIRAS? É ISSO?!
Era um momento de lavar a cara, a roupa já estava limpa, mesmo que aquela calcinha velha dela sempre ficasse pendurada no banheiro. Tudo bem, eu tive uma fagulha de paixão, nutri por aquela mulher, e pra mim isso já bastou, a família dela queria muito, a minha também, casei e assim estou. Eu sabia que cairíamos em becos emocionais, não, não sabia, eu havia pensando na conformidade da vida real, que a existência dos amores é algo relativo, que não existe.

Isso nunca garantiu que a vida seria mais calma. Saber da ausência de algo que nunca existiu.

_TUDO BEM, QUER QUE EU VÁ EMBORA?
_NÃO, SÓ QUERO QUE TROQUE A PORCARIA DA MELANCIA!
_VOU TROCAR, E NA VOLTA VOU EMBORA.
_VÁ E LEVO TODO SEU PATRIMÔNIO COMIGO!
_TUDO BEM, EU POUCO ME LIXO PRA ESSA MERDA!

Dessa vez fui eu quem trocou os focos, joguei minhas notas no rosto dela, seria uma manobra equivalente a um tapa, e ela encarou dessa forma.
Primeiro ficou sentada, depois começou a chorar.
Vi seu olhar assustado. Contudo eu não vou consola-lá agora, não pra cair numa rotina viciosa, entre brigas e voltas. A vizinhança já devia até prever nossas discussões e preparar baldes de pipoca.

_Isso não vai dar certo. Não somos mais dois jovens bobos.

Ela não falava nada, só chorava e chorava.

Eu arrumei minhas malas. Depois fiquei abraçado com ela por um tempo, fui embora dali, fui sim, não diria que o que aconteceu teve um autor, algo, alguém. Diria que foi o que aconteceu e pronto. Depois do ocorrido fui viver sozinho num apartamento qualquer. Descobri que era pai, ela casou-se de novo e visito meus gêmeos todo domingo. O pior foi entender que minha vida amorosa seria um ciclo, não havia cantos ou arestas para se fixar. Era meio oca, estranha em sua essência.

Parecia uma melancia.