Mal Resolvido.

“Se olharam nos olhos como se fosse a última vez…” Não gostava de ler coisas do tipo, se sentia mal em lembrar tudo que frases como essa faziam. Ele se afirmava sempre de que não precisava ter sido assim, de que podia ter feito algo a mais, de que podia ter sido diferente, de que ele não era igual a massa, de que seu egocentrismo não machucava em certa dose.

Assumiu seu estado mental e respirou.

_Como assim Clara?

_Sabe aqueles amores que não dão certo?

_Então não são amores, amor.

_São sim, não seja ingênuo, nunca ouviu um caso desses, em que os dois se amavam mas não podiam ficar juntos porque não davam certo?

_Tipo Romeu e Julieta?

_Olha, você já foi mais esperto hein.

_Oi?

_Prestenção: Quando duas pessoas se amam, porém são muito diferentes, sabe?

_Não, não sei.

_Esquece.

_Não, me fale um caso.

_Não quero.

_Ahhh, vai, só um.

_Atacou a síndrome de Peter Pan agora, foi?

Ela olhou bem nos olhos dele, olhos castanhos, vazios.

E partiu.

Ele correu atrás dela.

_AMOR! O QUE FOI QUE EU DISSE?

_NÃO DISSE!

Ela pegou um táxi, ele não alcançou e não se viram mais, uma porque ele precisava viajar amanhã, outra porque ela precisava ir para o exterior. Ele resolveu então ir para casa, viajou e não esqueceu.

Liga o rádio:

“Agora você vai ouvir a mais nova canção: OLHARES CONFUSOS.”

Muda de frequência.

“Ó meu amor, não fique triste, saudade existe…”

Muda de frequência.

“Chora, me liga, implora…”

Malditas rádios, vamos desligar esse aparelho.

Bateu o carro, está no hospital.

Ela recebeu a notícia via telefone, mas não se lembrou de esboçar uma reação afetiva, não queria.

Apenas mandou uma mensagem para ele, que seguiria perambulando por aí sem compreender o que aquela palavra que o celular exibia queria dizer.

“Entendeu?”.

O chefe.

Olhos injetados, punhos apertados, respiração rápida, pernas trêmulas, temperatura corpórea subindo e a ideia fixa explodindo. Estava pensando em todas as formas possíveis de demitir aquele maldito funcionário, falaria, escreveria, ou apenas, chutaria ele, como nos tempos de ensino fundamental, quando ele chutava aqueles nerds. Seu pai sempre se perguntava como alguém daquele jeito conseguira uma posição tão alta, não precisava da sua família, só de demitir aquele insolente, agora.

Nenhum outro na firma se atrevera a falar naquele tom com chefe, chefe que estava mais para senhor de engenho, metia medo, era uma figura respeitável nos dois planos: legal e ilegal. Sua esposa era muito, muito, muito bonita.

E burra.

A coitada acumulava chifres como rugas, diziam suas amigas, que amigas não, dizia ele para ela, ela negava que isso fosse verdade, ele não tinha nenhum amigo mesmo como podia dizer aquilo.

E ele provocava.

Provocava porque sabia que não geraria nenhuma consequência pra ele, provocava porque gostava, provocava porque sentia o poder. Criava vários planetas para si, como um pequeno príncipe ele ficava girando, girando, e regando sua rosa, mantendo os vulcões.

Rompante.

O Empregado havia entrado na sala.
O Empregado tinha uma arma na mão.
O Empregado atirou três vezes.

Meu Deus.

Como o Empregrado era ruim de pontaria, o chefe estrangulou ele com uma luva, colocou no empregado a própria arma e pá, atirou no pescoço do infeliz.
Pronto, limpem isso, tenho que provocar.

Como num blockbuster.

O mais pacato dos sujeitos assumiu uma posição inimaginável. Ele? Sim, superou vilões, salvou o mundo, conquistou o coração da garota amada e os créditos desceram, ou subiram. Quem se importa com a ordem deles afinal? Olhar para aquelas letrinhas dava uma espécie de náusea, ele brincava com sua visão, focando e desfocando. Testando até quando ia sem vomitar, aguentou bem e desligou a tevê. Estatelou-se na poltrona, havia ganho o dia.

Saiu para ver um filme. O cheiro de pipoca na fila, ele dizia que era cheiro de cinema, o barulho, ele dizia que eram pessoas especulando sobre o filme, tudo era centrado nesse ritual de pequenas coisas. Olhava para o chão, agitava os pés, nunca chegava a hora do filme, ele apertava a mão da namorada que estava centrada na sua mais nova simbiose, falava e falava ao celular, sem nem notar que a mão dele estava quase esmagando a dela por causa da ansiedade.

Entraram na sessão. Belo filme meu amor não é. Ele concordou. Os dois dormiram juntos novamente. Era um casal muito feliz. O vilão foi embora, ele saiu do zero. Ele era o herói. Sentou na cadeira da sacada de um apartamento e olhou para o chão. Era uma bela vista também. Irritava o que não seguia o fluxo lá embaixo, vetores e vetores.

Assim, na fila de cinema eles estavam. Ele olhou para ela, puxou o celular, deu-lhe um belo beijo cinematográfico e todos aplaudiram, a câmera seguia a fila correndo e focando os rostos animados aplaudindo o belo casal, sorrisos, olhares e olheiras.

Ele soltou da mãe dela, esfregou na sua calça enxugando o suor das mãos, tirou o celular dela e disse:

_Vamos pegar um filme melhor?

O bloqueio criativo.

Escrever algo relevante, a preocupação máxima era essa. Se ele fosse elencar uma pirâmide de prioridades essa seria a base e o topo, simultaneamente. Ele achava engraçado porque o leite e a nata quando misturados não ficavam por muito tempo assim, aliás, o leite fervia na realidade, mas ele estava tão imerso em seus devaneios que o leite não existia.

A relevância das suas palavras fugira, estavam todas mal conectadas, sufocando o autor, ele jurava que ia defender com todo furor sua tese. Provar à todos, todos provando dele, ele escolheria, ou não, apenas sofreria da consequência. E o bloqueio irritava mais do que devia, sua argumentação capaz e elogiada simplesmente escapuliu por um buraco de rato.

Levantou-se.

Buscou ferramentas para quebrar o bloqueio, uns respiros, copos d’água, olhar para o céu escuro, quase sem estrelas, tudo meio opaco, prédios, luzes intercalavam não necessariamente entre escuro e aceso. Tentou imaginar o que as pessoas faziam em seus cubículos.

Certamente todas tendo bloqueios pessoais.

Ele não precisava de criatividade, era só escrever o que era e pronto. E isso era o que de fato ele precisava, começou a rir, até olhar para o espelho e sua risada se dissolveu com suas olheiras gritando.

Ele precisava ser criativo.

Ora, ora, querem criatividade? Pego minha arma, dou um tiro na minha cabeça e coloro o papel, pronto, farei isso. Pegou a arma, apontou pra cabeça.

O gatilho disparou.

ERA ISSO! A criatividade veio, a arma foi guardada e ele não recomenda isso pra ninguém. Nem pro pessoal do cubículo de cima, que, meu Deus, como faziam barulho. Gente barulhenta.

O cd.

Não podia esquecer o cd, ele continha todas as informações necessárias para se fazer um dia belo, para deixar tudo nos conformes. Ele não esquecia as coisas mesmo, lembrou de quando estava no maternal e começou a juntar as peças de lego, uma por uma, lembrava que ele gostava de seguir um padrão de cores, azul, vermelho, azul, vermelho e verde, azul, vermelho, azul, vermelho e verde, lembrava também que não gostava de pegar muitas peças diferentes, elas incomodavam demais e as outras crianças gostavam demais delas, ele não, ele lembrou também que nesse mesmo dia o sol brilhava como aquela pedrinha transparente que ele achou a caminho da creche.

Ele não esquecia de nada, o cd estava firme em suas mãos, as nuances e os resultados do conteúdo daquele cd, realmente valia a pena, era algo bom para defender. Pareciam distantes memórias quando ele tentava encaixar no presente, mesmo pra um garoto de oito anos que hoje pensava mais em como se alimentar.

Seus oito anos não negavam que seus pais haviam morrido atropelados, seus tios assassinados, seus tios seguintes haviam o deixado num orfanato que pegou fogo.

Ele lembrava, as chamas, todas muito aconchegantes começaram a sair de controle e dominar a sala, saiu correndo dali rindo. Talvez o que as câmeras filmaram não seria visto.

Seria.

Não. Não seria.

O cd, agora era dele e ele corria, não sabia de fato pra onde estava indo, sabia que estava com fome, fome de decompor mais uma família, não, um garoto de oito anos não faria isso. Não era ele mesmo.

Menina.

Talvez os dias estivessem a cansando mais do que deviam. Talvez a dor de cabeça tivesse aumentado com o tempo. Afinal seu corpo já não era o mesmo, já havia passado o tempo em que se dava o luxo de selecionar alguém para ir com ela para algum compromisso inadiável.

E como passou.

De forma bem furiosa, a propósito.

O que lhe restava agora era tentar cozinhar alguns prantos baratos, observar a carne mudar de um vermelho doente para um marrom fecal. Todo dia ela dizia que ia começar algum curso de computadores, computadores? Não, era informação mesmo, infor o que? for-no. Era o que ela precisava, de um forno melhor.

Assar as angústias em temperatura alta e servi-las no ponto para comer e ser comida, alguém a queria enfim.

Um dos rituais que ela mais apreciava era o da manhã. Acordar abrir todas as portas e janelas, respirar bem fundo, tossir e aplicar sua bateria de remédios. Ligar a televisão e voltar para a cozinha. Sempre sentava no sofá falando que devia comprar um novo e que esse não era mais aquele sofá.

Aquele sofá.

Em que ela e seu amante agiam como animais durante infinitas vezes, o sofá tremia, o terço caía da parede e a televisão assistia tudo, nem um pouco constrangida.

Mas ele morrera, envenenado.

Pouco importava se era ela quem havia o matado, quem mandou ele fazer aquilo mesmo? Não importava, o que importa é que é hora de tomar o remédio para os rins, filtrar e filtrar.