Pontilhado

A agulha transpassava o tecido de forma ágil, logo os pontos começariam a aparecer enfileirados. Sabia que aquilo não mudaria o que aconteceu, um reparo talvez, porém cada movimento costuraria e fecharia.

Fecharia não só os pontos, lembranças seriam deletadas ao fim do trabalho manual. A cruz deixava uma mágoa, o entrelaço fazia o rancor desaparecer, a junção selara discussões mal-resolvidas, uma linha acima de linha iria enterrar as pessoas.

 

A linha travou.

Linha preta e seca.

 

O ponto das pessoas não ia, não saía, não dava. Tentou mudar o sentido da agulha até perceber que só estava voltando e voltando. Não poderia se prender ao passado.

Há mais pessoas e mais pessoas que ainda vão entrar em sua vida. Não é sobre esquecê-las, mas sim lidar com todas. Principalmente consigo.

Mudou a técnica de sutura. Fechar pontos no próprio antebraço não era uma tarefa grata.

Sonhos Lúcidos – 11

Era uma escada dentro de uma árvore. O tronco estava oco, porém ainda estava forte, não parecia ser além de maciço. O ambiente era úmido e fresco, os sons ecoavam da base até desaparecer na copa. O céu era escuro, contudo a árvore estava iluminada; não achei nenhuma fonte de luz primária.

Subi os degraus lentamente. Percebi que tinha que fazê-lo, logo após descrever uma diagonal, a escada transformou-se em caracóis alucinantes e comecei a correr.

O que eu deveria encontrar, encontrar iria!

Meu fôlego estava intenso, a sensação de não sair do lugar era muito forte. A curiosidade fazia meus nervos fritarem. Por que essa árvore?

A escada parecia encontrar seu fim. Estava na copa. A luz decomposta revelava minha face de horror. A copa dava em uma ponte de folhas e madeiras entrelaçadas, ponte que findava em uma porta aberta para outra escada.

Inspirei profundamente.

Acordei.

Light Light

Uma música mansa dominou o ambiente da sala.

Todos foram amordaçados pela paciência e calmaria.

Chás, almofadas, ventos, perfumes, braços abertos, camas macias, doces de toda natureza, sorrisos preguiçosos.

Aquele episódio foi assustador.

Os seres não faziam oposição, tudo estava bem e bom.

Bem e bom.

Demais.

A música não parava, banho, sonhos, ódio. Ódio? Que isso?

Tá tudo OK.

Tá.

Nem preciso terminar.

Escrever pra qu

Protego

Wingardium Leviosa!

Montei uma parede com barris de cerveja amanteigada, Hogsmeade estava terrível, corpos acumulados em pilhas, realidade bem diferente do passado.

A era Pós-Potter revelou-se como a última da história bruxa, da história humana, a esperança não acaba, mas os danos já alcançaram irreversibilidade em certas áreas. Voldemort parece uma piada de elfo agora.

Começou quando a paz estava aparentemente instalada, com o grande Potter sendo o primeiro ministro da magia, meu pai sendo chefe do departamento britânico dos armores e minha mãe responsável por Hogwarts. Por estar no eixo privilegiado historicamente, sempre fui alvo de preconceitos e expectativas instantâneas, ameaças que sempre irrelevei, e também por estar em tal meio só soube da conspiração quando ela emergiu. Já era tarde.

 

Accio!

Meu pai olhou para o jornal, seu rosto foi transformando-se, incrédulo.

—NÃO É POSSÍVEL!

 

Devo ressaltar que a era Potter foi a era de ouro da civilização. Os bruxos romperam antigos protocolos e revelaram-se aos trouxas, na verdade tudo isso ficou como denominação antiga, agora todos tratavam-se como humanos. O mundo havia se integrado enfim, a estratégia de apresentação fora bastante simples — tudo bem, tiveram que usar de feitiços e poções para “induzir” a aceitação e pacificação, porém ninguém saiu discordante no fim — os dois mundos coexistiam de modo que as diferenças só serviam para enriquecer os aprendizados.

 

Era a utopia sonhada pelo meu avô.

 

Claro, Potter ressalta em seu best-seller “Gênesis da Paz” que teve vários embates mentais até aceitar a ideia, pensou em certos momentos que a nossa miserável existência acabaria só piorando a situação, e que tudo daria errado. Que o mundo bruxo tinha suas razões para ser oculto. Ao mesmo tempo em que reconhecia que a maioria dos preceitos eram formados de meros paradigmas.

Que ele resolveu quebrar. E veio a paz. Conceitos que Potter conseguiu disseminar.

 

Estavam errados.

 

O caos havia se instalado antes mesmo do fatídico dia. Alunos da Sonserina fundaram secretamente instituições em conjunção com os trouxas, instituições de teor altamente discriminatório, que separavam os “sangue-puro” dos “sangue-ruim”. Juntaram o pior dos dois mundos de modo que ao perceberem a movimentação nada podia ser feito.

Então foi o tempo de Potter fazer um pronunciamento em rede aberta:

 

—Amigos, venho com peso lhes dizer que falhei em minha missão, confiei excessivamente em ideias minhas, que pareciam ideais comuns. Não eram. Refugiem-se com seus confidentes. Sei que meu tempo não é muito. Venho pedir desculpas e…

A transmissão foi cortada.

A essa altura meu pai já estava em alarde. Descobriu que haviam desaparatado Potter e que nada ficaria bem daí em diante.

—Potter está… morto.

Eu era uma criança. Não entendia a proporção do ato e nunca havia visto meu pai chorando. Vi uma nação desabando enquanto uma guerra se iniciava, o pior, não havia lados e líderes.

Só vi bandeiras e cores.

Não havia a quem culpar ou que sentido tirar daquilo.

Vi grupos, um que brandia “PELA LIMPEZA ÉTNICA DEFINITIVA” e outro que buscava a simples sobrevivência. Mais nada.

Depois daquele dia não vi mais meu pai, soube da morte dele através da minha mãe, que me mandou uma coruja, que conseguiu encontrar-me nos últimos acres de florestas inabitadas ou rastreadas por ali.

“Filho, seu pai padeceu. Como herói.

A Guerra da Irracionalidade está dominando o planeta como um todo, várias pessoas morrendo, o pretexto está sumindo, é como uma grande febre. Não há mais contexto de limpeza, porque esse já se perdeu em meio ao sangue. É o fim da civilização e provavelmente ao ler isso não estarei mais viva.

Sei que você é forte, por isso tente ao menos sobreviver e inspirar aqueles que ainda pensam que existe alternativa ao invés do ódio e inércia.

Com amor

Mione G. Weasley”

 

Arthur Granger Weasley.

Esse era meu nome.

O nome do meu avô, carregava, pois então, o ideal de décadas. A utopia dos meus antecessores, o sonho irrealizável.

NÃO!

É possível sim conseguir o estado de equilíbrio, não digo a paz em si, mas o acordo entre os justos.

Desde então tenho vagado sozinho, encontrado companhias preciosas com quem troco histórias e objetos, além de me alimentar, é claro. As nozes e frutos da floresta não dão forças além de uma mísera caminhada:

LUMUS!

O galpão se iluminava, era muita, muita comida; eu precisava saber para onde ir, mas quem garante que eu encontraria gente que não surtou? Que não perdeu a racionalidade.

Claro, todos suspeitavam que houvesse algo ou alguém envolvido nessa fase mais dramática da guerra, uma maldição, um vírus talvez? Porém ninguém poderia levantar fortes hipóteses sem parar de buscar pela própria sobrevivência.

Estômago vazio não pensa.

Enquanto comia pude começar a pensar nas relíquias, como seria bom se elas ainda existissem, não, a destruição realizada pelo ministério foi uma decisão sábia, bem como a incineração de todos os giras-tempos. Não havia paradoxo temporal para culpar aqui. Os erros são seus e pronto.

Um barulho interrompe minha refeição.

 

—Quem está aí?

 

—REVELE—SE OU EU MATO!

 

Um raio veio em minha direção.

 

PROTEGO!

 

O feitiço foi ricocheteando até sumir.

Vi que não era uma maldição imperdoável, a magnitude dele era simples, tinha cara de um Expeliarmus banal.

Será alguém com juízo mental inabalado?

Sei que os que sabiam conjurar feitiços sempre preferiam o desarmamento do que execução sumária, isso é coisa de gente sem razão.

Gente.

Não. Seria ela?

 

—Lunna Longbotton?~

—NÃO.

—Claro que é! Sou eu! Arthur!

—E como eu sei que você não é alguém que tomou uma polissuco?

—Pergunte-me.

—Qual meu feijão de todos os sabores preferido?

—Cera de ouvido! ahaha Eu nunca esqueço!

—ARTHUR!

 

Um abraço longo e demorado. Olhares rápidos e urgentes vieram depois.

 

—Eu não acredito que você está vivo! Senti tanta saudade.

—Luna, preciso de ajuda, como vão as coisas? Depois que saí de perto das cidades, vim pra floresta inaparatável, perdi a noção do tempo.

—A guerra vai de mal a pior Arthur. As pessoas estão lutando sem motivo, não há mais lados. Um amigo meu do Chile que conjura feitiços sem precisar de palavras; ele informou que há grupos de sobreviventes que lutam contra verdadeiros zumbis!

 

Aquela alegoria fantástica que conhecemos por Inferis…

 

—Estou muito triste, nenhum de nossos colegas dá sinal de vida, disseram que não existem mais vassouras, e que todas as bombas dos antigos trouxas serão reativadas.

 

Explico: No acordo entre “bruxos e trouxas” ambos concordaram de inativar de maneira definitiva as suas armas de destruição em massa, eles as bombas, nós as maldições.

 

Porém as maldições nunca dormiram.

 

—Lunna, você veio de onde?

—Faz uma semana que vim de Hogsmeade. Vim pra cá fugindo de mim, das memórias de meus pais sendo mortos na minha frente, usaram de Crucio para enfim executá—los usando armas humanas…

 

A menina caiu em choro.

Neville e Luna estavam mortos.

 

—Precisamos voltar para lá!

—NÃO ARTHUR! JAMAIS!

 

Tive que ficar durante semanas, até nossa comida chegar perto do fim, para convencê-la que ficando ali, o máximo que nos restava era esperar a guerra ou o mundo acabarem sozinhos. Nosso potencial não poderia ser ocultado, seria egoísmo com as poucas esperanças que todos têm.

 

—Então é isso, pronta?

—Pronta.

 

Partimos em direção a Hogsmeade, a cidade que era símbolo de diversão e festas agora era a pedra da resistência, seria o nosso núcleo.

 

Estava nevando, e muito, a silhueta da cidade já descrevia várias chamas e focos de fumaça, havia alguma batalha séria ocorrendo por lá.

 

—Você me dá cobertura Lunna?

—Eu não sei…

—Use protego totallum e se precisar imperius.

—Não uso de maldições, você sabe disso.

—Não temos escolha.

 

O silêncio confirmante.

 

Na primeira avenida que entraram, visualizaram uma fogueira, e uma pilha de seis corpos, todos adultos, faíscas voavam perto da pilha, muito provavelmente a batalha estava próxima do fim.

Observei.

Duas dezenas batalhando contra si mesmo, não havia ordem, apenas mortes e mortes. Todos pareciam zumbis automáticos por ali.

Foi quando nos viram.

Todos miraram a atenção para nós, começou a saraivada de raios.

 

PROTEGO TOTALLUM!

Nossos escudos estavam unidos, em potência máxima.

—LUNNA, AGUENTE UM POUCO, VOU TENTAR PASSÁ-LOS PARA O NOSSO LADO!

IMPERIUS!

E por fim alguns foram acertados em cheio.

Formei um exército ao meu favor.

Tais aparentemente recuperaram a consciência, ricocheteando os feixes luminosos de modo a atingir nossa distância para reforçar o escudo.

 

Era incrível.

—Olá. – Alguns deles pareciam renascer.

E foi isso.

Descobrimos que a maldição Imperius revertia o estado de inércia mental o qual estavam submetidos nossos colegas, restava descobrir o porquê disso.

Enquanto isso eu poderia ficar muito bem ali, eternamente protegendo a Lunna.

 

Inspiração: Harry Potter (J. K. Rowling)