A dor definiu sua existência.
Nasceu em um parto sofrido, não queria de jeito nenhum sair de dentro da mãe, quase doze meses de parto, nãããão, não quero sair, não pra esse mundo, me deixem aqui dentro. A mãe acabou sucumbindo aos gritos e a hemorragia, já o bebê ficou na UTI com pulmões colapsados, aparentemente uma doença de prematuro o havia afetado, o motivo, sem explicação, só sabiam que com certeza ele deveria estar sentindo muita dor pela carinha de angústia, e perder alguém assim tão cedo, meu Deus.
A infância definiu-se em agulhadas e lâmpadas frias, olhava para o teto para não ver a agulha entrando, mesmo que estivesse acostumando-se com as suas, aprendia a aplicar todo dia de manhã, a andar com as agulhas-caneta no bolso, isso mesmo antes de andar de bicicleta, aliás, quando tentou acabou prendendo o pé na coroa, o que rendeu mais pontos, mais dor, o que mudou dos primeiros dias para cá é que agora estava começando a ficar indiferente a tanta dor, como se ela já fosse o normal, talvez, quem sabe, sentir dor era na verdade o estado de não sentir, um outro tio que o deixou nessa fase o lembrava de uma frase que carregaria para a vida inteira “Dor só sente quem vivo está” e lembrava de seus ouvidos doerem por causa da inversão de elementos da frase ao mesmo tempo em que sentia cócegas – um tipo agradável de dor.
Em sua adolescência descobriu mais amplitudes de dor, enquanto recomendava analgésicos pra uma garota que parecia com ele, a diferença é que ela escolhia a dor, estava cheia de cortes, de arranhões e arroxeados, sabia quais eram mais potentes e pra qual região do corpo, sempre se entupiu deles, ela precisava para potencializar a dor, se sentia dor mesmo com analgésicos e anestésticos explodindo em si, era sinal que quando o efeito passasse, ela viria deliciosa, assim ele descobriu que a dor poderia ser diversão para outros, tentou entender, quase conseguiu, antes de perceber que estava tendo uma dor maior, uma bem angustiante, não, não era isso, ele estava infartando, emoções muito fortes, e mais luzes de hospital e mais rotinas de agulhas, na verdade isso tudo aconteceu depois que descobriu que não viria mais a garota porque seus pulsos foram profundamente afetados e a dor maior foi acompanhada de uma violenta anestesia, a maior de todas.
No início de sua fase adulta teve certeza de que já experimentara todas as dores possíveis na teoria e na prática, contudo esqueceu de uma dor bastante óbvia, a dor do envelhecimento, de perceber que seu tempo não foi o que deveria ou será o que queria. Essa dor desencadeou mais dores psicológicas, que voltaram a abalar a rotina, que por fim afetaram a visão do sujeito, que entrou nos seus 25 anos enxergando a vida de forma monocromática, sorrisos acinzentados e um céu branco que não havia fim, tudo lacerava feito bolhas em sua pele, feito a oftalmologista que se apaixonou, mesmo tendo idade suficiente para ser sua mãe, ela parecia tão limpa de dores, tão pouco sofrida, havia cansado de tanto sentimento igual, não via mais graça na dor, nem pra deprimir ou excitar, só queria a neutralidade, e mais ainda quis depois que descobriu que mais uma pessoa o deixara, um acidente de trânsito besta fez a dor de mais uma perda ser muito estranha, era muito associada com raiva, associação de dores, com outras pequenas dores, tudo era isso, não havia pra onde fugir, feliz até doer, doer até perceber que ainda estava vivo, que ainda teria o que sentir de dor.
Chegou a fase final da sua vida. Seria o fim da dor? Com cinquenta e poucos anos experimentou a dor de ter uma família e perder mulher e filho num latrocínio que virou manchete de televisão, estava amarrado a uma máquina que filtrava por si, a dor da incompetência renal, do corpo, que sempre fora problemático só agora parecia realmente não aguentar a si mesmo, seu marca-passo de última geração não fazia mais sentido, nem seus remédios sem efeitos colaterais – eram tão sem graça. Não se chocava ou sentia mais, então experimentaria algo mais potente que o fim, mais potente que a tragédia, tentaria uma lobotomia sem anestesia, é isso, superando essa dor nada vai ser maior que os meus problemas, tudo será nada e o sentido pode enfim aparecer para a minha vida, poderá sair de morbidez deliciosa para uma neutralidade, era a única que ainda almejava, e como doía almejar algo que nunca teria, e como era bom sentir essa dor.
Talvez a maior maldição fosse estar vivo.
Iria começar a lobotomia, uma marreta e um prego gigante, mirou a testa, olhou no espelho, iria aplicar tanta força que dessensibilizaria os dedos, no fim iria despencar e abrir o crânio como uma abóbora, o barulho seria desgradável, o que agradaria, o quanto conseguiria ouvir e perceber até tudo entrar em hiato?
3, 2, 1.
Não.
Não poder sentir a dor de ser um derrotado, merecida se eu o fizesse isso, seria muito cruel, muito dolorido.
A grande recompensa seria sentir até que perdesse o controle de suas dores, de sua vida.